OS
FORASTEIROS NA ALDEIA
NOTA EXPLICATIVA DE
APRESENTAÇÃO DO PEQUENO GRUPO DE PESSOAS, NÃO
RESIDENTES NA ALDEIA E QUE PERMANECIAM O TEMPO QUE QUERIAM E QUE ERA SEMPRE CURTO E
QUE
DESIGNEI POR “FORASTEIROS”
Foi ponto assente antes de me decidir a falar de alguns momentos, lugares,
pessoas e ambientes que contribuíram, cada um de sua forma, para aquilo que
hoje sou, com defeitos e qualidades como todos e um ou outro pormenor que será
meu apenas.
Das pessoas que mais me marcaram durante a infância, achei que devia
incluir o traço que o caricaturista apanha de cada rosto e sem criar o que não
existia, uma distinção entre as pessoas, mas tão só a forma distinta que era
adotada voluntariamente por cada um, criando duas classes que outras diferenças
não seriam notáveis se não fosse a posse de mais ou menos terras de cultivo.
Bem ou mal está feito, um conjunto de Senhores e Senhoras e outro dos Tis e
Ti’as.
Mas faltaria um outro pequeno grupo de pessoas não residentes, que fariam
uma vida errante, sem residência conhecida e que tal como apareciam do mesmo
modo sumiam. Por terem esta característica nómada estive indeciso em os
designar por cometas ou forasteiros, não me agradando qualquer deles, mas
ficando pelos “Forasteiros” que em nada tinham a ver com os do Oeste americano
e que marcaram a adolescência de milhões de jovens como eu fui. Vamos aos
tiros:
PRIMEIRO FORASTEIRO
Foram vários, uns quase residentes e outros tão fugidios como estrelas
cadentes.
O quase residente que melhor recordo deram-lhe, não sei quem nem onde, o
nome de Pan Pan.
Penso que aquela designação deve ter sido adotada, na falta de nome, por
ser a única vocalização que o acompanhava como um ritmo de fundo musical e se
assemelhava com um pan pan.
Sofria de alguma perturbação mental, não violenta, apenas reagindo mal
quando assediado pelos garotos que o seguiam e entoavam uma cantilena onde
entrava o pan pan e que era: “o ti pan pan come cebola albarrã!”
Era aquele bolbo, muito frequente em algumas terras e que fazia parte da
flora endémica da região, que ele trazia dentro do saco velho e sujo e que
atirava para casa das pessoas quando lhe davam de comer ou beber, no seu
perturbado cérebro devia servir de recompensa! Recordo que dinheiro não
aceitava!
A pessoa que ele visitava, mal chegava, como no cumprimento de uma
promessa, era a senhora Rosinha, dona da mercearia a trinta metros de minha
casa e que seria a mais abastecida da aldeia.
Por regra ela recebia-o com a delicadeza que nela era natural e por vezes
mais se parecia com missão; servido, ele retribuía com um ou dois bolbos da
referida planta.
Vestia andrajosamente e nunca soube qual a sua naturalidade, nem a sua
idade, aparentando ter mais de cinquenta anos.
Ainda por terá ficado quando parti para Lisboa, não sabendo mais noticias
dele ou de outros.
SEGUNDO FORASTEIRO
A certa altura apareceu um homem, ainda novo, também sem se saber de onde
vinha, que apenas pedia água e a bebia como de a não bebesse há dias. Durante a
sua curta passagem pela aldeia, nunca alguém o viu comer, mas beber foram
litros vários que foram testemunhados.
Eram muitas as estórias que as pessoas da aldeia, na falta de outro
entretenimento, inventavam: vivia torturado por não ser correspondido pela
mulher que ele amava; ou uma versão mais “pecadora” que teria sido traído pela
sua amada!
Como ele não ouvia estas e outras desventuras que a criatividade
alimentava, nunca as afirmou ou negou. E duvido que o fizesse, caso ouvisse
alguma das versões.
A sua passagem por Castelo Melhor foi um pouco como um viajante no deserto,
foi o seu oásis para se dessedentar e comer ele teria outras fontes.
Este forasteiro não deve ter encontrado motivo de interesse e, tal como
chegou, deve ter partido, mas ninguém viu!
Reis Caçote
Dig/27/01/14
TERCEIRO FORASTEIRO
Outra estrela de pouca duração foi a de um miúdo, cerca de doze anos,
franzino, vindo de não se sabe de onde, e que cantava, para o meu ouvido, tão
bem como o miúdo espanhol, o Joselito, que na altura estava em voga e que nas
feiras aparecia sempre algum conjunto, normalmente um a tocar e outro a cantar,
que o imitava, bem pior que o miúdo que pela aldeia passou.
Não devia ser de muito longe, apareceu mais que uma vez, escoltado de
imediato pelos pequenitos da aldeia, entre eles eu, mas que de cantor nada aprendia;
deliciou, as vezes que apareceu, miúdos e graúdos numa zona do mundo onde pouco
se cantava, a não ser quando ranchos de mulheres trabalhavam, mais na apanha da
amêndoa e da azeitona e algumas vezes no lavadouro quando os ribeiros levavam
ainda água limpa para lavar e enxaguar.
O miúdo desapareceu de vez, ou regressando a casa ou mudando de rota,
espero que para melhor que o Nordeste beirão!
Reis Caçote
Dig/27/01/14
QUARTO FORASTEIRO
Este era tão misterioso como um fantasma, mas lhe chamavam “Catalão”.
Penso que nunca alguém o viu, mas eram várias assuas fisionomias e muitas
as aventuras.
Alto, moreno, vestido de preto, de botas de cano brilhantes, chapéu de aba
larga, aí com uns incertos trinta anos; ora aterrorizava os injustos, ora
protegia os injustiçados por onde passava, mas por todos sendo evitado.
Quando se pretendia saber quem o tinha visto era sempre alguém que outra
pessoa conhecia e de quem tinha ouvido as aventuras, tal como eu faço agora em
relação à memória.
O Catalão era a sombra e o Sol das mentes mais ou menos criativas que não
vão além da rotina do dia de trabalho.
Talvez por isso ele era sempre avistado e nunca visto com aquela aura de
mistério, mas que as mais atrevidas mentes o recriavam com ar sombrio, a aba
larga do chapéu preto, olhos pretos e frios, lá no alto do seu cavalo, preto
também, de pelo luzidio e olhar inquieto, a contrastar com o do cavaleiro,
sempre calmo, frio e neutro.
Vi-o sempre, durante as descrições, a atravessar o horizonte distante,
recortado num poente de fogo, uma imagem tão nítida como era a voz do narrador!
Saí daquelas terras há anos vários, muitos, mas continuo a ver, como antes
via, nítida e perturbante, a esbelta figura da composição plástica equestre,
formada pelo solitário Catalão e seu negro cavalo em pose elegante a
movimentar-se entre o trote e o galope!
Hei-de voltar a visiona-los! Um dia, em breve, do futuro!
Reis Caçote
Dig/27/01/14
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