É A
VEZ DOS TI’S E DAS TIA’S DE
CASTELO
MELHOR
Como é de supor, Castelo Melhor não fugiu à regra das outras urbes,
pequenas ou grandes. Havia muitos mais ti’s do que Senhores! E se alguma fugiu
à regra só pode ter sido de uma destas formas, apenas três por não ter tido
tempo de aceitar outras:
Primeira – ou o senhor se instalou primeiro, mal ou bem e partiu depois a
buscar os que lhe iriam tratar das terras, os ti’s necessários, mas por certo
mais que um, senão podia ser complicado, um amo e um escrevo! Não era
aconselhável e todos perceberão porquê! É só uma questão de segurança, mas
havia outras, a doença ou morte do escravo. Passemos, portanto à
Segunda – ou então o senhor, sanguinário e louco, ou louco primeiro e
depois sanguinário, se é uma coisa por certo também é outra, com as armas e um
bom aliado, bom não é no sentido da bondade, resolve desfazer-se dos restantes
ti’s que o temiam e fica, uma vez a tarefa acabada, só ele senhor e o bom
escravo! E lá volta a colocar-se a dificuldade da primeira hipotética forma, ou
seja, qua dos dois ficava, sabendo o senhor que o bom Ti que restava, vendo o
que se passou com os outros e temendo que, noutro acesso de fúria, o Senhor o
avaria a ele, resolve adiantar-se e, zás, lá vai o Senhor! Só que o Ti, agora
sozinho, sem senhor ou dono das terras, concluiu que ele, afinal, sem que
tivesse pensado nisso, toma posse “administrativa” (esta é de agora, não
daquele tempo) das terras e passa a ser ele o Senhor! Senhor, mas sozinho, como
no início da primeira das formas, logo, tem que repetir tudo, mas isto é
hipótese que ele, e eu, não iremos repetir! Vamos, então, à
Terceira – ou ainda, como pode muito bem suceder em Castelo Melhor, a curto
prazo; os velhos Senhores e os velhos Ti’s já foram desta p’ra melhor, muitos
dos Ti’s ainda vivos, porque mais novos, deram à sola, ou para cidades
migrando, como eu e a maioria dos da minha geração e seguintes e outros, que à
primeira pertenceram, acertaram com os vários caminhos para a estranja,
emigrando e em Castelo Melhor hoje, só estão meia dúzia (meia dúzia é uma
maneira de dizer) de Senhores e de Ti’s, cada vez olhando mais desconfiados uns
para os outros e a botar contas à vida, a ver quem a vida vai deixar primeiro!
E poderá muito bem, muito bem não, suceder que o último possa ser um Ti
qualquer, que decide não querer ser senhor, até por falta de hábito e
habituar-se já não vale a pena, decide zarpar para outro lado, virando costas a
tudo, como fizeram os antigos do Castelo Calabre que vieram a fundar Castelo Melhor.
Mas o que eu queria mesmo registar e pelo andar da carruagem digital nunca
mais faço, eram os Ti’s, só alguns, lá da aldeia, até por que os Senhores,
porque o são, foram os primeiros, sendo natural, mesmo sendo menos, que um ou
outro escapasse, mas a ideia inicial era serem todos, mas não passava de
intenção, porque podia deixar alguns de livre vontade ou esquecimento, por não
ter nenhum compromisso a não ser comigo, podia a qualquer momento decidir não
escrever sobre ele, mas como a todos eles o passaporte sem prazo de validade
que lhe foi dado para a vida terminou já, não corro o risco de algum em falta
poder vir a reclamar!
Vamos lá aos Ti’s e Ti’as e deixemo-nos de conversa fiada! Quem vai ser o
primeiro ou a primeira? Uma? Vamos a ela:
I
A TI LAURA, DE ALCUNHA “BORRINHA”
E digo que será alcunha por não acreditar que alguém, no seu perfeito
juízo, fosse dar tal sobrenome ou apelido à Ti Laura.
Morava na Rua debaixo, junto ao ribeiro, agora esgoto, a menos de cinquenta
metros da casa onde nasci e sempre vivi até me enviarem para Lisboa. Seria a
Tia Laura da idade da minha mãe e tinha, se não estiver errado, três filhos, o
mais velho de nome André.
O rapaz era tão bem comportado como os outros da sua idade, até melhor do
que outros e passava a vida a brincar perto de casa, com os irmãos mais novos e
os primos que moravam na casa ao lado da deles.
A Tia Laura, nunca percebi porquê, cada vez que se lembrava, fosse a que
hora do dia ou até da noite fosse, chegava à janela e com um volume de voz impressionante
(que beleza no canto lírico!) gritava
“ Oh, André
Lopes Gastalho!”
Era este o nome completo do rapaz e ninguém podia naquela época ter mais de
nome e dois apelidos ou, como era o meu caso, dois nomes e um apelido, o do Pai
como a legislação devia impor; no caso do André o Lopes seria da Mãe que
gritava e o Gastalho do Pai que ouvia e tapava os ouvidos, tal como ele e os
que se encontrassem nas proximidades. A maioria das vezes o André estava mesmo
por debaixo da janela, mas o grito-chamamento era sempre igual.
E aldeia, daquele lado, ou uma boa parte dela, com as galinhas a cacarejar
e os cães a ganir ou ladrar, murmurava: lá está a tia Laura Borrinha a chamar o
filho mais velho!
Nunca percebi, nem lhe perguntei (é o perguntas!?) por que era o André o
único filho a beneficiar daquele brado e os outros filhos não eram gritados,
eram normalmente chamados! Seria o André um privilegiado da sorte ou um
azarento dela?
Muitos murmuravam que o grito era contra o Gastalho pai, mas nunca ia além
do murmúrio.
Penso que nem o André alguma vez percebeu o porquê daquele chamado!
Reis Caçote
Dig/14/04/2014
O TI FERNANDES, poa alcunha “QUEBRA LINHAS”
I
Era um dos alfaiates da aldeia, não o mais procurado, talvez por ser um pouco
trapalhão, e certamente a alcunha vinha dessa qualidade ou falta dela.
Se bom alfaiate não era, noutras artes era um desastre completo!
De tudo ele dizia saber fazer e alguma faria melhor que a maioria, mas
dessas não irei falar, por não me lembrar delas e porque devo ter adquirido o
mau hábito, comum a muito boa gente, o que nem é o meu caso, de só falarem do
que alguém faz mal.
E nem vala a pena pensar, a título de exemplo, dos governos e das oposições
e menos ainda naquela época em que só havia governo! Oposição, não, dizia-se.
O ti quebra-linhas seria hoje um cidadão atualizadíssimo, por ter uma
auto-estima incomparável! Tudo sabia fazer e bem, dizia ele.
A certa altura convenceu os conterrâneos de que era um exímio matador de
porcos, dum só golpe o animal era sangrado e nem tinha tempo de sofrer! Isto
seria um grande avanço na arte de matador uma vez que até ali nenhum dos
contratados conhecidos conseguiram sangrar os animais de modo a que não
fizessem aqueles gritos horrorosos de quem se apercebe que está a um passo da
morte, não seria este o caso dos atados porcos, animais de pouca ou nenhuma
inteligência.
Na matança que um seu familiar preparava e tendo em conta o apegado saber
do seu familiar, há que convidá-lo, pois até ficaria mal se o não fizesse!
As matanças eram logo pela manhã, para dar tempo de tudo preparar antes e
depois da matança era lavar as tripas do bácoro já sem vida e aberto de alto-
a- baixo ou seria de baixo a alto, já que o cadáver estava agora pendurado de
cabeça para baixo, preso pelos tendões das patas traseiras e com o focinho
dentro de um alguidar de barro esmaltado, a aparar o sangue qua ainda ficara
espalhado pelos órgãos e que não saiu todo na sangria que lhe provocara a
morte, talvez paralisado de medo nas veias, e que iria servir para o serrabulho
que o pessoal ajudante iria comer. Todo o outro seria mais tarde aplicado nas
morcelas.
Estive, como é bom de ver, a falar do ritual da matança, sem grandes
pormenores que em nada melhorariam o texto e a ninguém aproveitaria, já que
hoje se vai ao talho e do porco se compram as febras, o lombo as costeletas, o
entrecosto, o fígado para as iscas, os rins, o chispe e cabeça para o cosido à
portuguesa, mesmo que em Espanha seja feito. As duas patas de trás vão ser
tratadas com sal e deixadas a enxugar (curar, se chama) e depois adquire o nome
e o sabor requintado de presunto. A indústria chama abate à matança e aproveita
tudo, o pêlo é que não é aproveitado, mas parece que em tempos foi, pelo menos
de alguns, com cabelo à punk e que era depois nomeado por cerdas, bem úteis
para os sapateiros enrolarem na ponta da linha e facilitar a passagem pelo
buraco feito tela sovela. Deve faltar muito pormenor, mas quem quiser conhecer,
tim-tim por tim-tim a matança do princípio ao fim, vai a uma das muitas que são
feitas para turista ver e para televisão filmar, mas só mostrar o que não é
suscetível de causar algum desagrado aos mais sensíveis.
Quando o ti Fernandes chegou ao local da matança, com suas armas de morte,
um grande facalhão que estivera a afiar cuidadosamente momentos antes, já o
cevado estava deitado de lado e bem atado ao banco da madeira bem grossa, ainda
agarrado por quatro ou mais homens para que o banco se não desequilibrasse e
tombasse com o porco aos berros que parecia que o queriam matar e não se
enganava; o mestre na arte de matar sem dor rapou os pelos numa pequena área
que ele sabia ser a apropriada, entre as patas da frente e virando-se para os
ajudantes “segurem-no bem”, enfiou o facalhão até ao cabo no corpo do animal, que
aumentou os gritos e esperneou com tal força que os ajudantes se viam e
desejavam para o segurar! Deve ter sido quando o porco se convenceu de que iria
mesmo ser assassinado! Era um barulho ensurdecedor!
Mas o sangue que devia ser em golfadas pelo cabo da faca não apareceu, só o
cevado continuava aos berros e o te Fernandes a tirar a faca e enterra-la, mas
nada de sangue vindo do coração, apenas aquele que das veias e artérias
superficiais mal sujava o cabo da faca!
Terceira tentativa e novo fracasso sucedeu, com ao ajudantes a olharem-se e
o animal nos seus gritos agora um pouco roucos, parecia dizer ao ti Fernandes “
por favor, acabe de uma vez com isto”! O alarido foi tal e durou tanto tempo
que a vizinhança, habituada a ouvir matanças, achou que algo não corria bem e
começaram uns a ficar preocupados e outros com pena do desgraçado, mas logo se
lembraram do que aprenderam de ouvirem dizer “não se pode dizer coitadinho ou
outra expressão que revelasse dó, porque demorava mais tempo a morrer o animal,
fosse porco, cabrito ou galo e esqueciam os gritos do porco” Aquele aparato
fracassado levou alguns vizinhos a pensar que o dia da morte ainda não tinha
chegado!
Um dos “ajudas”, como nas touradas, estava já farto de perceber o
sofrimento do bicho, largou a pata que lhe calhara das duas traseiras, deu um
encontrão no ti Fernandes que este quase se estendia ao comprido, pegou no cabo
da faca e de um só golpe atingiu o coração do cevado que estava era a ser
sovado, o sangue jorrou com força e os berros da vitima começaram a ficar
roucos e mais fracos conforme o sangue ia correndo para o alguidar já com
vinagre no fundo.
Os berros foram ficando mais roucos e espaçados e uns minutos passados
ficou sossegadinho e calado! Deve ter sido quando entregou a alma ao criador,
mas este não deve ter sequer dado por isso, queria era ver o porco chamuscado e
bem rapado, pendurado junto da salgadeira.
O ti Fernandes devia ir esclarecer o que correu mal, mas o ajuda que acabou
por fazer o que ele, ti Quebra linhas não fez, disse-lhe com firmeza: oh,
homem, vá lá para as suas agulhas, tesouras e dedais e não se meta a fazer o
que não sabe! E o ti Fernandes, lá partiu, como cão “com o rabo entre as
pernas” a pensar em novas sabedorias!
Assim se iniciou uma nova carreira profissional que logo terminou, mas
podia ter sido auspiciosa!
II
Por razões que terão a ver com o custo da deslocação e estadia, ou pode
muito bem ter sido por doença ou outra qualquer razão, o fogueteiro para a
festa do Anjo, aquele da lenda, recordam-se? Não apareceu.
Mas como lançar os foguetes, mal ou bem, havia sempre quem o fizesse e
alguns, não sendo profissionais de pirotecnia, faziam-no na perfeição, não
foguetes dos que estamos a falar, mas dos outros, menos barulhentos, mas não
menos perigosos! Dizia-se que, na falta de fogueteiro, houve voluntários para
os deixar ir; na aldeia, à alvorada e depois, nas pausas das cerimónias
religiosas, depois na romaria pela encosta (mas que grande estirão!), com os
andores aos solavancos, tem-te-não-caias, naquele caso era tem-te-santo não
caias do andor, as bandeiras e o estandarte que só os mais fortes levavam e
alguns para dar nas vistas experimentava, mas à primeira sacudidela de vento
era vê-los aos trambolhões, de estandarte já sozinho e quietinho no chão, a
gargalhada abafada porque iam na procissão. Quando havia mesmo vento não havia
exibicionistas, eram mesmo dos ou três de músculos treinados no ginásio ao ar
livre e enxada ou picareta a servir de aparelhos, quem se encarregava do
estandarte até ao alto do monte do Anjo, onde vento nunca faltava à romaria.
Nesse ano de fogueteiro ausente até o vento colaborou, quase não se
notando! Tudo correndo normalmente até que chegou a hora de lançar o balão e
aqui tudo se complicou, era tarefa para especialistas, especifica de
fogueteiro.
Os mordomos reuniram e acharam que o melhor mesmo era não ser lançado. A
decisão foram comunicar aos romeiros que não se opuseram, mas cochichavam,
comparando com outras festas e outros mordomos onde o programa foi cumprido.
Havia os eram pelos mordomos outros não e outros nem por uns nem por outros.
Quem mais se manifestava a favor do lançamento eram os garotos, era do que mais
gostavam, melhor mesmo do que correrem para ver quem apanhava mais canas de
foguete.
Ver o balão a encher, ficar cada vez mais gordo e depois a largada, mais ou
menos desnorteada no arranque, até se equilibrar nos ventos mais altos e ser
seguido, com as mãos a servir de pala, porque o sol aquela hora vinha mesmo a
alegrar os olhos entusiasmados da miudagem. Lá vai ele, em direção a Almendra,
diziam uns; outros desmentiam, não é nada, vai para a Meda e ficavam nisto até
que deixava de ser visto e a paz voltava ao anjo.
Mas estava ainda por decidir se o balão era guardado ou não e parecia não
haver consenso, sendo mais os que achavam e quase exigiam que o balão teria que
ir para o ar, mas nem um único se oferecia para o preparar e o fazer elevar aos
céus, ali bem mais perto do que se fosse lá no fundo, na aldeia.
Eis que, de peito pequeno mas saliente, inchado como balão, o ti
Quebra-Linhas se propõe tratar do assunto, que não tinha qualquer segredo, era
só olear a mecha, chegar-lhe lume, o balão vazio bem esticado na ponta do fio e
este fixado na ponta da vara e uma vez cheio era largá-lo e boa viagem, vai com
Deus.
A maior parte não confiava muito nas sabedorias do ti Fernandes, mas estava
mais que visto que nas deles confiavam bem menos e lá deram a anuência para ele
o lançar.
O problema que parecia estar resolvido parecia voltar à estaca zero quando o
balão foi cuidadosamente desembrulhado e se deparou com aquilo que era a “boca”
de entrada do fumo e de calor para encher, em vez de ser circular como sempre
fora, era um quadrado formado por quatro ripinhas.
Foi grande a confusão que aquilo gerou! O ti Fernandes, o homem dos seis
ofícios e não sete como costuma dizer-se, porque o de matador de porcos falhou,
resoluto como sempre foi( e neste ponto devia ter o aplauso pela coragem
revelada e não o sorriso de mofa que quase sempre lhe dispensam ), sem pensar
muito e esse era o seu mal, respondendo às interrogações gerais, explicitas ou
implícitas, sentenciou, sem margem para contestação: “ este balão é dos
modernos (aprendam técnicos ou aprendizes das leis da Física de todo o mundo,
por que mestres assim não aparecem a qualquer hora e de mão beijada! Este
recomendação é apenas da responsabilidade do narrador, assim como o foram as
pretéritas e o serão as futuras que possam surgir!) e, por isso, dizia o ti
Fernandes com segurança, em vez de a mecha ficar fixada no cruzamento dos
pedacinhos de ripa e voltada para dentro, era o contrário que tinha de ser
feito, ao seja, a mecha em vez de apoiada no tal cruzamento das tabuinhas,
ficaria da mesma forma ali fixada, mas pendurada para fora do balão.
O resultado será este, esclareia o técnico: em vez de a mecha funcionar
como vela acesa, que ninguém veria, ficava como rabo- de- raposa a arder antes
de iniciar a subida e um cometa quando o balão se elevar! Percebem? Perguntou,
ufano.
Aqui vou
ter de meter um aparte de uma cena ocorrida muitos anos mais tarde, com o
engenheiro diretor de produção, ao examinar uma linha de secagem de embaladas
serigrafadas! Achou que o sistema que outro colega tinha montado na origem da
instalação da linha não estava bem. Que a ventoinha instalada sobre os
elevadores para aspirar o ar quente de modo que as embalagens serigrafadas
chegassem ao fim do percurso estivessem frias e secas, devia estar a soprar o
ar ambiente para dentro da linha e dava como exemplo “quando nos queimamos nos
dedos o que fazemos? Aspiramos ou sopramos? Teatralizando a atitude”. O
responsável da manutenção, eletricista com anos vários de experiência, torceu o
nariz, reticente e à parte comentou em voz baixa: “não acredito que o
engenheiro que fez a instalação, que esteve em Itália para ver o funcionamento
e instalação, tivesse montado a ventoinha ao contrário, mas ele é o diretor e
especialista em eletrónica, até pode ter razão, mas duvido”
Decisão tomada, há que passar à acção, ou seja, inverter o movimento de
rotação da ventoinha, operação de fácil execução que o electricista tratou e
meia hora depois estava tudo pronto para ver o “Ovo de Colombo”. Mal as
embalagens chegaram ao alto da primeira subida, atingidas pela corrente de ar
da ventoinha, a que não estavam habituadas, saltavam dos respectivos suportes e
precipitavam-se em queda com a velocidade natural da gravidade, aumentada pela
corrente de ar instalada, onde se iam comprimindo até bloquearem a linha.
Chamado o director, decidiu: “voltem a instalá-la como estava” e zarpou!
Comentário do electricista: “engenheiros de trazer por casa” e foi repor a
posição da ventoinha!
O ti Fernandes assim procedeu, tudo parecia estar a correr bem; o cordel do
polo norte a passar pela extremidade do pau em forquilha e a outra ponta bem
segura pelo ajudante. Os trapos embebidos em petróleo ardiam no chão e o
técnico a direccionar a quadrada boca do moderno balão de modo a que a fumarada
e calor expulsassem o ar normal que estava ainda no balão quase vazio.
O ajudante empoleirado mais acima ia aguardando a ver o balão a encher,
cada vez mais redondo, mais inchado apenas aguardava ordens para largar a ponta
do fio.
Quando o técnico de aerodinâmica (não era o Pedro de Gusmão, mas o ti
Fernandes era isso mesmo só que não dizia pelo medo de ficar na história!)
achou que estava no ponto, acendeu a mecha que pingava para cima dos trapos
fumegantes, ficou com os olhos ainda mais cheios de fumo e a arder, o balão não
mais se decidia a partir, mesmo com a ajuda dos impulsos leves que lhe eram
dados e quando lhe pareceu que estava no ponto disse ao do pau, larga!
Mal este largou o cordel o balão achatou um pouco, abanou como barco em mar
agitado, fez um esforço gigantesco, inclinou-se mais ainda e foi o fim. A
mecha, ou melhor, a chama da mecha aproximou-se de um dos lados do quadrado,
atingiu o papel e ainda o cometa não tinha subido nem cinco metros, mais a
descer do que a subir, ardeu num abrir e fechar de olhos, caindo sobre o
rochedo, tombo curto, mas queda mesmo, perante as dezenas de testemunhas!
O ti Fernandes limpava os olhos, não por estar a chorar de pena do balão ou
do seu fracasso como lançador de balões, mas porque os lhe ardiam por efeitos
do fumo e dos vapores do petróleo!
Agora todos sabiam tudo e comentavam: “como era possível ser a mecha a
arder do lado de fora do balão?! Afinal não havia modernice nenhuma, era mais
fácil pregar quatro tipas do mesmo tamanho do que fazer um aro circular”
Todos estavam agora contra o ti Quebra Linhas: “ para que se mete no que
não sabe” e um que devia ser da oposição atirou para o ar: “ ele é um atrevido,
mas nenhum de nós, mesmo com mais anos de ver lançar o balão, se ofereceu e ele
o fez!” Silêncio!
E o ti Fernandes, aproveitando este súbito silêncio, declarou: “ Nunca mais
lanço nenhum balão” e meteu pés a caminho agora a descer ladeira abaixo, não
assistindo ao fim da romaria.
III
Tinha muitas outras facetas este ilustre conterrâneo, ti Fernandes o Quebra
Linhas, mas estas duas, da matança e do balão, são as que mais me encantam, das
que recordo.
Não faltava num Carnaval uma iniciativa sua, sempre procurando que fosse
uma crítica social e algumas tinham piada, como a do burro com um despertador
na pata esquerda da frente, quando começaram a aparecer os relógios de pulso.
A minha ida para Lisboa, com anos a fio sem ir a Castelo Melhor, excepto os
de cinquenta e quatro e cinco, devido à bronquite, fui perdendo o contacto, não
sabendo o que foi feito dos filhos, o Gualdim, que fazia um bom trabalho como
sapateiro, o Viterbo e a filha, cujo nome não recordo, não soube mais o seu
destino.
Já com os meus dezoito anos, numa das férias que lá estive, no Verão,
quando os estudantes voltavam , cruzei-me com o ti Fernandes, já bem velhote,
de volta do seu copito, depois mais uma rodada e outra, que cada um ia pagando,
os que o conheciam melhor puxavam-lhe pela língua das mágoas e as estórias
ganhavam corpo por si próprio contadas, com piada a maior parte.
Os que com ele estavam todos os anos e sabiam o seu pendor, logo o picavam:
“ Então e na cama como é, ti Fernandes?”
E ele, entre o ar triste e brincalhão, lá dizia que a mulher só o deixava
lá ir se ele, antes, fosse apanhar um feixe de lenha!
É uma tristeza, queixava-se! E a lenha às vezes dura tempo demais! Risos,
dele e nossos!
Era talvez o segundo conterrâneo de que mais gostava!
.
O TI ANTONINHO”FERREIRO”
I
Era um dos filhos de um casal que morava numa casa toda pintada e maior do
que a da média das outras, distante daquela onde nasci, não mais de trinta
metros.
Tinha, que me recorde, mais sois irmãos, ambos ligados à profissão de
ferradores, só o ti Antoninho tinha forja, quase encostada ao ribeiro e tendo
de permeio apenas duas apenas duas casas entre esta oficina e a casa da minha
família.
Quase todos os dias, à noite, a forja trabalhava, enquanto foi a única, ou
para reparar utensílios de lavoura, ou para fazer material novo, tal como
ferraduras que ficavam em armazém para quando precisavam de ser usadas ser só adaptá-las
ao casco dos machos, cavalos poucos e às unhas das vacas. Havia poucos de cada
espécie, mas havia.
Sempre gostei daquele trabalho nocturno da forja, com a oposição de alguns
adultos que se sentiam mais à vontade com os juvenis já acamados; era um gôsto
ver o carvão de “pedra “ a arder na boca da forja, o grande fole que todos os
garotos gostavam de “tocar”, a bigorna maior fixada num grande tronco de árvore
cortado em forma tronco cónica e a enorme pia de granito, meia de água, onde as
peças, uma vez prontas, eram afogadas, com um som característico de um pedaço
de ferro ou aço incandescente a ser mergulhado em fria água, como um gargarejo
bucal mas mais forte e até assustador quando a peça era grande.
Quando era para fazer de novo ou substituir as pontas das relhas, eram
precisos três homens experientes no manejo das marretas e no ritmo em que
teriam de encontrar para, um de cada vez, ir batendo no sitio que o ti
Antoninho ia indicando com o seu martelo na mão direita enquanto a esquerda
segurava, na ponteira da grande turquês a peça, que ia movimentando para que à
marretada fosse ganhando forma e os acabamentos eram feitos pelo ti Antoninho e
com o seu martelo empunhado numa mão e a peça na outra. As marretas eram
empenhadas com ambas as mãos e não era para todos aquele trabalho onde a força
do braço era aliada ao ritmo do trabalho colectivo.
Não era só porque os adultos preferissem estar sós que se preocupavam com
os juvenis. É que os jactos de chispas que pareciam setas incandescentes e
batiam na cintura dos homens, protegidos por uma peça de cabedal grosso atado,
bateriam nos olhos dos pequenos e a cegueira era quase uma certeza. A maior
parte deles levavam as roupas mais velhas, já esburacada de sessões anteriores.
E como explicar a tua presença a tocar o fole, a ganhar músculo, diziam
alguns, se aos outros era negada? Esta é a pergunta que a mim faço, agora não
só para o fole, mas no minério, em que todos ou uma boa parte dos mineiros
queriam que eu a eles me associasse e algumas vezes o fiz até que dávamos o
filão por saturado. Não sei porquê e embora me intrigue não estou disposto a
pensar mais nisso.
II
Além de ferreiro e ferrador o ti Antoninho, como vários outros, gostava do
seu copito e bebido na taberna, com outros, em casa não sabia tão bem, dizia.
Como não havia taberna perto de casa, lá tinha ele de se deslocar até ao alto
da Rua Larga, onde havia três; o gosto foi-se aperfeiçoando e aos poucos
tomando conta da vontade que num ferreiro devia ser férrea, mas não era e
acabou por virar vicio e dependência, não sendo raros os dias em que a primeira
viagem devota que fazia era a da “capelinha” do deus baco! A devoção e o
litúrgico rigor eram tais que muitas das manhãs chegava antes de a porta abrir
e poder beber a primeira oração; no Inverno era ainda noite cerrada, mas lá ia
ele a cumprir a promessa que todos os dias fazia de deixar de beber, mas mal a
fazia já a queria violar.
Durante muito tempo me espantou o facto de ele, ao dirigir-se à taberna,
por certo usando o caminho mais curto, teria que passar em frente do portão de
entrada para os logradouros e casa das refeições da casa do meu padrinho, onde
andava à solta ou preso na ponta de uma corrente, um enorme e já idoso cão
“Serra da Estrela”. O pessoal que frequentemente entrava e saía de casa pelo
portão, o cão já se não manifestava e com esse descanso amigável, muitas vezes
deixavam o portão aberto ou mal fechado e aí estava uma ratoeira para quem
passava e que felizmente nunca teve consequências. O cão fazia mais barulho de
que trabalho, acabando por dar sentido ao provérbio “cão que ladra não morde”.
A partir de certa altura o cão que ladrava furioso a toda a gente, deixou
de ladrar ao ti Antoninho, o que muitos estranharam. Alguém lhe perguntou
porque não era atacado pelo animal? A fórmula era de tal modo simples que
parecia o ovo de Colombo: “bastou arregaçar as mangas as primeiras vezes e
agora já nem do portão sai, ladra sempre, mas nem ao portão se chega!”
O perguntador, desconfiado e porque morava mesmo em frente ao portão,
resolveu ir confirmar. Viu o portão mal fechado e o matulão à solta; desceu a
rua Larga, tinha que ser senão tinha que passar em frente ao portão e não podia
ou dar uma grande volta para apanhar o caminho do ti Antoninho. Desceu, como já
disse, a Rua Larga, virou na esquina do senhor Marcolino e foi seguido até
entrar na rua do Passadiço e com o receio do costume, apenas com a garantia do
ti Antoninho, iniciou a subida que já era a da casa do meu padrinho de um lado
e do outro e só no fim seria à direita a casa do senhor Aleixo e à esquerda o
muro que era o do espaço das traseiras da casa grande, guardadas pelo cachorrão
que, mal se apercebeu de que vinha lá gente apareceu logo a ladrar furioso!
Aqui devia incluir o nome do autor do teste, mas como não recordo, fica mesmo
assim; ergueu-se em toda a sua altura e mostrando bem os braços ao furioso
animal, este estacou, ainda olhou durante uns segundos, virou-se, meteu o rabo
entre as pernas e sem pressas dirigiu-se ao portão e entrou!
Assim ficou confirmada versão do madrugador ti Antoninho e a de que o
gigante Serra da Estrela, não passava de um medricas que até uns fracotes
braços sem mangas o acagaçava!
Por mim fiquei, teoricamente, com mais uma lição e que era quando os
adultos, mais os das aldeias dos meus rios, quando se envolviam numa rixa, o
gesto primeiro era tirar o casaco se vestido o tinham e de seguida era
arregaçarem as mangas, mas para os lutadores não resultava ou não resultava
sempre! A vida, com seu ar natural e sem avisar, dá-nos lições que, raramente,
lhe reconhecemos o papel de mestra!
No final da vida, o ti Antoninho, corroído pela doença que o vinha minando
há anos vários e fortemente, ajudada pelo álcool e seus nefastos efeitos, já
acamado e com ataques de perda de equilíbrio, físico e mental, levantava-se do
catre e tentava subir pelas paredes de casa, perseguindo os seus monstros que a
perturbada mente ia produzindo e só os seus olhos viam.
Um dia, sonhando provavelmente com o céu, com uma tasca e uma forja, a
seguir a uma crise violenta, sorriu, fechou os olhos, cansado e não mais
regressou do sonho!
Não me recorda quem ficou a trabalhar com a forja, os filhos eram pequenos
e só os irmãos ou algum dos seus ajudantes permanentes o poderia ter feito.
Tinha já aberto uma outra, por um familiar Currala, penso que de nome
Alberto, que esteve na tropa ao mesmo tempo que o meu irmão Licínio, mas em
quarteis diferentes, onde fez o curso de ferreiro e ferrador, aquilo que na
linguagem militar se chama especialidade, ficando a oficina relativamente perto
da do falecido ti Antoninho. Tenho vindo a usar o termo “perto de”, mas é uma
forma de dizer, por que perto estávamos todos uns dos outros, porque a aldeia
não era assim tão grande.
Este novo ferreiro teve um período de comportamento psíquico parecido com o
do ti Antoninho, quase pela certa devido ao álcool que bebia com abundância,
vendo animais terríficos que ele descrevia mas de forma que só ele entendia e
que as pessoas mais entendidas com as coisas místicas diziam que ele estava possuído
pelo diabo! Se assim fosse era, pela certa, o diabo de serviço aos ferreiros!
Dele se contavam coisas de espantar e de encontros como “mafarrico”, sempre
inventadas nos delírios e de que nunca se lembrava.
O espirito do maligno, talvez farto de passar pela má fama de feitos
inventados e receando que a sua honra de diabo sério e cumpridor fosse afectada
por tão pífios atrevimentos, resolveu não mais chatear as gentes de Castelo
Melhor e deve ter partido para outras paragens onde houvesse ferreiros, mas
havia quem afirmasse solenemente que o Lucifer foi expulso pelo Anjo São
Gabriel e que devido a esse feito foi promovido a Arcanjo!
Reis Caçote
Dig/l9/01/14
A TI’ANA DO “FERREIRO
I
Mãe de todos os ferreiros da aldeia, com excepção do formado pela
“Universidade” militar na arte que a família sempre teve, de ferreiro e
ferrador. Era uma mulher robusta, altiva, das de têmpera diferente da dada na
forja, capaz de ter e criar ferreiros e suas têmperas do aço.
Este porte de matriarca tinha origem não só na origem genética, como hoje
se sabe e divulga, mas por outras causas exteriores à questão da ciência
biológica.
O seu percurso formativo penso que teve início durante a Segunda Guerra
Mundial, onde Portugal era um País neutral, mas não tanto como a lei que
institucionalizou a neutralidade! Um pouco como hoje sucede, mais tecnicistas
as Leis, feitas por especialistas nas partilhas, onde o provérbio do “quem
parte e reparte e no partir tem arte, fica sempre com a melhor parte” se aplica
ou assenta como uma luva! A teoria não declarada, mas que está contida no seu
mais intimo detalhe, é a de que as Leis não são para cumprir, mas para violar.
E assim era a que decretou que Portugal não era visto nem achado naquela briga
dura, de que não falarei, porque era estar a seguir o mau exemplo! Minha missão
se prende com a ti’Ana.
Alguém, de que nunca ouvi falar e que para o efeito pretendido não faz a
mínima falta, descobriu que nas suas terras do Seixo, existia um mineral que
tinha algumas aplicações de grande utilidade e que hoje nem sequer é nelas
aplicado, mas noutras o será.
O filão da rocha magmática, da família do quartzo vinha dos lados da Mêda,
da margem esquerda do rio Côa , atravessava este nas imediações das gravuras
rupestres de há trinta mil anos, nem mais nem menos um, mesmo que passados já
mais de quinze anos sobre a data em que se mostraram, continuam a ter trinta
mil anos.
Estes despormenores geológicos, geográficos e históricos levam-me quase
sempre a esquecer, a esquecer não, a adiar ou desviar do tema em apreço. Não
gosto, mas não consigo fugir à tentação; ainda um dia destes terá de vir o Anjo
São Gabriel, e bom seria que não tardasse, a acudir-me e proteger-me destas
tentações, mesmo que não sejam demoníacas, ele sempre me dará uma ajuda e eu lhe
agradecerei.
O tal filão, aqui é daquelas coisas que me agradam pela quase perfeita
designação, por me parecer uma derivação de “fila” indiana, outra coisa que à
India devíamos ter já agradecido e pago os direitos de autor, assim como todo o
mundo, pois filas não faltam e cada vez mais, mas isso é capaz de ser política
e eu não quero o tacho de ninguém, mas que as há cada vez mais, lá isso há!
Agora até para a sopa dos bancos da fome, o que é uma vergonha para a sociedade
da abundância e do saber que tão incensada foi.
Dizia que o tal filão entra nas terras da margem direita do Côa por uma
“estrada” que ainda abrange uma faixa de terras de Almendra e vem andando,
passa pelas terras de muita gente, sobe até ao Alto de Santa Bárbara, desce até
ao Douro, deve atravessar o rio por debaixo das águas, tal como fez no Côa, e
perde-se em Trás-os-Montes ou continua, não sei até se não irá para Espanha,
mas mesmo no tempo dos passaportes para estas filas nunca foi exigido. Um dos
locais de passagem tem a designação de Canada do Inferno que, no seu inicio ou
no fim, não vale a pena discutir, junto ao rio, é onde está o maior núcleo das
ditas gravuras rupestres, todas agora em Foz Côa, quando deviam ser mais
exactos e dizer no concelho de, pois Foz Côa fica na margem esquerda e a
maioria das gravuras, reconhecidas pela UNESCO, fica nas terras nobres de
Castelo Melhor, ou seja, na margem direita.
Mas era sobretudo nas terras do Seixo, propriedade da ti’Ana do Ferreiro
que o filão e suas pequenas veias e artérias, se deixaram invadir por este
mineral da família do Volfrâmio – o Scheelite - de que falámos e a ti’Ana
enriqueceu, porque este mineral era usado como activador da combustão da
pólvora, por fricção, mas embora não constasse, devia estar já a ser usado na
indústria metalúrgica para obter ligas mais resistentes.
A formação da ti’Ana, de rija têmpera, não teve a ver com os Ferreiros ou
com a pequena fundição da forja que para temperar, dando ao ferro a dureza do
aço, eram os choques térmicos do ferro incandescente mergulhado na pia de água
fria e nalguns casos era usado um corno de cabra que era esfregado na ponta ao
rubro da relha, mas que não devia ser fácil provar que dava algum resultado,
mas com o ter de lidar com os “garimpeiros”, à moda portuguesa, a quem ela cobrava
uma percentagem sobre o minério extraído e que sempre acusou de a quererem
roubar, não me custando a acreditar porque assisti várias vezes a esconderem
uma parte do minério, era a fuga ao fisco de hoje.
II
As terras do Seixo de que a ti’Ana era proprietária, nada produziam, a
terra arável era má, como quase todas o eram, mas a sua exposição ao sol era
tão pouco favorável e a inclinação tão acentuada que ninguém as arrendava!
Assim, pareciam as terras esperar pelas guerras, como que descansando entre
elas, para depois se transformar num campo de batalha, martirizado pela
artilharia dos garimpeiros, em violentos combates de incertos resultados.
O que se passou, se é que algo se terá passado, nas terras da ti’Ana do
Ferreiro, na I Guerra Mundial, nada sei. Nada tive a ver com essa guerra e, por
isso, só chegou ao meu campo da memória o que fui ouvindo dos mais velhos: os
gaseados, as feridas, de mortes não ouvi falar muito e do livro de história,
com as confusões que se seguiram e a antecederam, pouco ficou registado e o que
ficou deve ter sido atamancado.
Da segunda é já diferente! Quando nasci já andava no ar assim como que uma
trovoada ao longe, não se viam os relâmpagos nem se ouviam os trovões, mas
parecia algo a rastejar e aproximar.
E, seis meses depois, um fulano chamado Adolfo, como o meu vizinho da
frente, lá num país distante, chateou-se com alguns de quem não gostava, os
judeus, na minha aldeia também não deviam gostar deles e até diziam aos miúdos,
quando se portavam mal, “não faças judiarias” ou deixa-te de “judiarias” e até
nos chamavam judeus! Mas não havia qualquer maldade nestas pedradas verbais que
nos atiravam os meus conterrâneos, posso garantir. Esta linguagem devia ter
mais a ver com o que o Apóstolo Judas fez ao Cristo e não um problema judaico
com a dimensão de Castelo Melhor! Isso é mais de agora, mas dos únicos que lá
não gostavam mesmo e penso que continuam a não gostar, nunca percebi porquê,
nem hoje percebo, era mesmo dos russos! Penso que era uma questão de cor do
cabelo, pois assim que um aparecia com o cabelo mais claro, os garotos a
brincar e os adultos não sei se seria também, mal o garoto fazia e até quando
não fazia nada, os mais velhos diziam-lhe: ah, “russo de mau pêlo, má raça pior
cabelo!”. Ora, isto também não podia ter a ver com o Adolfo, pois do que mais
tarde soube ele gostava dos loiros, mesmo que ele usasse cabelo preto,
contradições que vá lá a gente entender. Ficamos então assim: era dos russos
que os adultos se serviam para injuriar os miúdos e estes uns ao outro só para
provocar a reacção e darem umas boas corridas, esconderem-se atrás do que
estava mais perto, sempre rindo, até que o de má raça e pior cabelo desatava a
rir e tudo acabava em abraço e mudança de brincadeira.
O senhor Padre é que ao domingo, durante a missa, passava a vida a dizer
que a Rússia tinha que ser convertida e que a Senhora de Fátima lá estava a
cuidar do assunto, tal como o Anjo Gabriel, lá do alto do monte, cuidava de
todos nós.
Não percebi muito bem esta parte final da Rússia?! Insistia um dos
conterrâneos, quando ali passei uns dias com o meu irmão Licínio. A Rússia
converteu-se e agora? Se calhar a Senhora de Fátima fica sem trabalho! E
acrescentava: “mas olha, também já merece descansar uns tempos, levou tantos
anos a converter! Teimosos, estes Russos!”
Da II Guerra Mundial dizia, essa sim, já mexeu bem com as terras da ti’Ana
do Ferreiro! Como o negócio começou não deve haver registo, deve ter sido só de
boca-a-boca e mais ou menos assim:
“Vós ides dar-me cabo da terra, enchê-la de buracos e como vós e eu não
sabemos onde os vão abrir, não posso arrendá-la! Vamos fazer assim: do minério
que tirais dais-me uma parte a mim pelos estragos e assim podeis esburacar à
vontade”.
O pessoal, nesse aspecto e nos outros todos, foi sempre gente de uma só
palavra, não era precisas declarações escritas, nem para o minério nem para as
outras coisas da vida. Combinava-se, cumpria-se. A burocracia chegou muito mais
tarde e não atacou em todas as frentes nem traseiras, ao mesmo tempo! Foi
minando, devagarinho, assim como quem não quer a coisa, assentou arraiais de
tal maneira que ainda continua, mais disfarçada nuns lados do que noutros, mas
está aí para ficar!
Aquelas encostas do Seixo, de nascente e Sul, foram esburacadas,
esventradas é um termo forte demais, durante o tempo que a guerra durou e,
segundo consta, eu não tomei nota na memória porque andava entretido a aprender
outras coisas, tais como: andar, falar, brincar pouco, depois a fazer as tais
“judiarias” que não era nenhum santo…! E a ti’Ana, no fim do dia, lá esperava
os pesquisadores para cobrar a “dizima”; uns lá pagavam, outros não porque
vinham de mãos a abanar por nada terem pesquisado.
Uns acertavam e continuavam, outros falhavam e desistiam.
Alguns ganharam muito dinheiro e quase todos o gastaram, sem proveito e
pouca glória, os apanhadores, antes chamados de garimpeiros como nos Brasis, lá
do outro lado do oceano. Não sei se a designação de garimpeiros está bem ou mal
aplicado, nem vou tentar saber, mas apanhadores é que não tem ponta por onde se
pegue, porque, como está bem claro antes, não era chegar e apanhar! Dava mesmo
muito trabalho este trabalho de apanhador!
Os que terão enriquecido, para além da ti’Ana, terão sido os negociantes,
alguns de longe e outros de nem sequer sabiam. Vinham em determinado dia da
semana, pagavam e levavam. E um ou dois da aldeia que funcionavam como
grossistas, guardando os minérios de cada um, em separado, pois o preço variava
em função da pureza do mineral e que era definido pelo peso de meio litro dele;
o peso do considerado de grau de pureza bom devia pesar um quilo e meio, se
assasse era de alta pureza, mas a maior parte não chegava à média da pureza, ou
porque estava mal escolhido, ou porque tinha muitas incrustações de rocha.
Os que calejavam as mãos calejadas e esfolavam o corpo naqueles buracos
perigosos, onde por vezes ficavam meio soterrados, mas mortes terão sido
poucas. Tudo por uns gramas de minério, quando o achavam.
Fortunas mesmo lá da aldeia, excepto a ti’Ana, eram nenhumas! E podíamos
dizer que o provérbio se aplicava: “o dinheiro mal ganhado, água o deu, água o
levou!” Mas aqui não tinha aplicação literal; custava mesmo a ganhar na maioria
dos casos e eu que o diga, não nesta II Guerra, mas na outra, não memorial, a
da Coreia, quando acabei a minha primeira fase de formação académica!
Nessa guerra já eu fui, com muitos outros, um “combatente” de retaguarda.
Nunca percebi de que lado da trincheira eu estava, aliás nunca percebi se as
guerras tinham fronteiras distintas, só mais tarde entendi, as trincheiras
dessa guerra e das que sem descanso se vão iniciando um pouco por todo o lado
do mundo!
Posso confessar agora, a ti’Ana já morreu há dezenas de anos e eu há já
mais de meio século me deixei de minérios, que nunca lhe paguei a taxa, mas não
fiquei a dever nada, pois os garotos como eu que andavam no rebusco e apenas
esgaravatavam a dos buracos que outros faziam, estavam isentos de tal taxa.
Se a tivesse pago, também não teria sido com ela que a fortuna que a ti’Ana
apregoava, quando exaltada com alguém ou com algo que lhe não agradava,
gritando, para que todos os presentes ouvissem, que ainda tinha notas de mil
que davam para forrar a casa toda e era bem grande como se disse no início!
Um dia houve em que a zanga era tal, praguejando para todos escutassem:
“Oxalá venha uma trovoada tão grande que leve a terra toda para a Côa (no falar
lá da aldeia o rio era fêmea!)
E logo um coro, sem treino prévio, mas afinado, respondeu, a rir falando:
“Deus a oiça oh ti’Ana, isso queríamos nós, assim ficavam os filões todos à
mostra e não precisávamos de andar, dias e dias, de ferro em punho e enxada à
mão, a picar o chão e nada encontrar!”
“Maldita gente!” E virou-lhes as costas.
A garimpa da scheelite terminou com a concessão da exploração a uma empresa
que, essa sim, quase virava do avesso o monte do Seixo! E só o não fez por que
a guerra na Coreia durou menos do que os fornecedores previam e porque foram
encontradas novas soluções para substituir aquele mineral. Durou o suficiente
para ter causado ou apressado o passamento da
Ti’Ana do Ferreiro!
Reis Caçote
Dig/21/01/14
O TI’ARI
I
O ti Ari, que morava lá para as Pintas, assim chamada uma área situada
entre a traseira das casas juntas ao ribeiro, constituída por um Largo que ia
até a casa do senhor João Grilo e duas ruas que convergiam, sem se juntarem,
num pequeno Largo triangular que na época terminava junto da última ponte sobre
o ribeiro mais a montante.
Sempre senti alguma curiosidade do porquê do nome, mesmo que a Rua onde eu
nasci fosse a dos Pintos! Sempre aceitei o nome da minha rua, tal como está na
certidão de nascimento, repousando na convicção de que ali tivesse morado, em
tempos antigos, algum Pinto que tivesse a importância social para ter direito a
uma rua com o seu nome, mas Pintas…bem, deixemos este segredo como está, se não
foi esclarecido na altura que a curiosidade era maior muito menos o será hoje
que os mais velhos já se cansaram da vida e os mais novos na idade perderam
completamente a curiosidade histórica ou outra, são poucos e vivem a vida por
certo sem este tipo de curiosidades! Estamos num século novo onde as altas e
baixas tecnologias são o teorema e os corolários duma geometria quase só
rectangular.
O ti Ari estivera emigrado no Brasil e quando eu nasci já ele teria deixado
as Terras de Vera Cruz e de Pedro Álvares Cabral e estava a residir em Castelo
Melhor há não sei quantos anos, com a esposa e dois filhos, um casal, já
crescidos ambos.
A minha convicção de que ele teria deixado o Brasil há anos vário era a ausência
de sotaque, mas este pormenor não serve de base para grandes e definitivas
convicções, podia muito bem ele ser um caso raro daqueles que não atinam com a
outra língua e o sotaque não se assimila do nada! A família também não falava
um português-brasileiro e isso me levou a pensar que ele e a família não
encontraram a ”árvore das patacas” que outros terão achado rapidamente e
regressou antes mesmo de se vincular oralmente à língua que nunca foi a de
Camões.
Tinha a fama de amestrador de cães de guarda, arte que nunca presenciei,
talvez por eu gostar mais dos de caça, de que cheguei a ter um cachorro, por
mim escolhido duma ninhada (outro vocábulo que acho mal usado, se as aves
nascem num ninho e para eles a ninhada estará bem aplicada, agora para os mamíferos…!...vamos
andando, senão ainda me esqueço que o protagonista deste Ti é o ti Ari) que a
cadela do senhor Antoninho, este safou-se, tinha parido e que pouco tempo
cuidei dele; teve um acidente com água a escaldar e teve de ser abatido para
não sofrer mais tempo! Decidi na altura que não voltaria a ter cães e só terei
violado a promessa que a mim fiz e que são as que mais respeito, mal cheguei a
Luanda, ainda no edifício inacabado dos futuros laboratórios da Petrofina e que
nunca chegaram a ser. Apareceu, com ar desorientado, junto aos edifícios um
animal adulto, mas de pequeno porte, que mal o afaguei não mais me largou. Duma
correia de mochila fiz uma coleira para o primeiro amigo em Luanda e como não
sabia o nome e ele devia ter esquecido e documentos não tinha consigo, nem
Bilhete de Identidade, Carta de Condução ou Carteira Profissional, escrevi o
nome de Comandante, que ela não rejeitou. Mas quem o rejeitou mesmo foi o
major, comandante dos artilheiros e do Pelotão onde fomos integrados. Chamou-me
e ordenou que o animal voltasse a ficar anónimo, não queria aquele nome na
coleira e…ainda procurei explicar que eu também era comandante da minha secção
de abastecimento de munições, mas ele não alinhou na conversa e lá tirei a
coleira ao novo comandante. Não sei se o animal levou a mal ou se pensou que
aquele gesto era de rejeição, o que não era, mas dum momento para o outro, tal
como apareceu, desapareceu. E foi pena, pois no dia seguinte de manhã
apareceram os verdadeiros donos a oferecer quinhentos angulares para lhe
devolverem o seu animal. Era um animal de Marca, mas eu não sabia e se soubesse
não iria prender o cão à espera das alvíssaras! Foi o segundo me muitos
incidentes tidos com a hierarquia, o primeiro foi o do gelado, no desfile de
apresentação e chegada, com o gelado que o capitão, com inveja, me mandou
deitar fora!
II
Desculpe, ti Ari, mas não me esqueci!
Além de amestrador de cães de guarda era também um versejador, dos que mais
tarde soube a designação, repentista! E com esta característica cativava a
garotada que andava na escola, onde já se foram habituando aos versos e os da
pré-escola em que o espaço para os ATL era a aldeia quase toda.
Era sempre à noite, nas noites de Verão, que ele se sentava na soleira da
porta de casa, a ver, como ele dizia, o bailado dos morcegos a fazer pela vida,
desbastando o bando de mosquitos que, na falta de iluminação ou fonte de luz
que os atraísse, aproveitavam a luz que da lua emanava, do Sol reflexo, e
usavam o palco mais amplo em busca não sei de quê! Os morcegos era fácil saber,
eram os mosquitos que eles procuravam e nas suas manobras acrobáticas iam
entretendo o ti Ari e outros, que para a rua vinham por não se poder estar em
casa com o calor de fornalha do dia e que só amainava quando outro dia de
estorricar se apresentava.
Não eram muitos os garotos, mas sempre se juntavam três ou quatro e aí
começava poesia à desgarrada, como vim depois a conhecer em Lisboa, nas tascas
do Bairro Alto e Mouraria. O ti Ari dizia uma quadra, sempre rimada e aguardava
que um dos garotos, todos no chão sentados, fizesse sinal para dizer a sua, em
resposta à do ti Ari! Como o vocabulário era pobre, na maioria das vezes saía
mal o que dava para uma gargalhada geral. Por vezes saía bem e sem graça
nenhuma. Quanto maior fosse o disparate maior era o aplauso do riso!
E assim se passavam horas até que os garotos, alguns a cair de sono,
debandavam para suas casas, sempre ali perto.
III
Como ficou descrito no bloco dedicado aos Senhores, o senhor Aleixo lá
está, como reformado dos Caminhos de Ferro de Benguela. Tínhamos, então, um
emigrante do Brasil e um reformado de Angola, um vindo do continente americano
e outro do africano, qualquer deles do Sul.
Cada um teria as suas vivências e cada um teria as que não viveu e teria
gostado de viver, muitas delas eram pura imaginação.
Ou porque o tema poesia estava já a não resultar e ele gostava de companhia
para passar o tempo entre a ceia e a deita, não sei se combinado ou não com o
senhor Aleixo, o certo é que resultava, transformaram os garotos em mensageiros
das suas fantasiosas recordações intercontinentais, funcionando de uma forma
simples e lúdica para todos:
O ti Ari dizia que em Angola se tinha cruzado com uma ave de tal modo
grande e pesada, que para levantar voo tinha que correr quase um quilómetro em
terreno plano ou a descer, que de certeza no Brasil não havia! Um dos garotos,
mais atento, ainda perguntou:
- “Como é que o ti Ari sabe que não há ainda maiores?”
Acho que não há aves tão grandes no Brasil, mas o melhor será mesmo ír
perguntar-lhe, propunha o africano?
- Vamos lá perguntar ao senhor Aleixo, ao menos ficamos a saber!
E a equipa, nunca maior de quatro, partia a correr, cada um tentando ser o
primeiro a chegar ao cadeirão que o senhor brasileiro usava para o mesmo fim,
tentar que uma brisa chegasse e amenizasse aquela fornalha que parecia querar
estufar vivos os habitantes daquela nossa aldeia.
- Então que há, meninos? Fingindo nada saber, pergunta o senhor Aleixo.
Ouvia a estória como se nada soubesse e logo que acabava, nunca era longa,
dizia o brasileiro senhor:
- Digam lá ao ti Ari que no Brasil, vi eu com estes olhos que um dia a
terra há-de comer – os miúdos achavam aquilo esquisito, mas não iam além da
troca de olhares, era o senhor Aleixo que dizia, tinha que estar certo- vi uma
borboleta tão grande, tão grande, que quando batia as asas a voar, derrubava
árvores em redor e chegou mesmo a tombar casas, mas isso eu não vi. As asas
eram quase tão grandes como daqui a casa do ti Ari!
E lá partia a patrulha a correr até casa d africano Ari.
Resposta transmitida, ficavam a aguardar se o ti Ari tinha alguma coisa
ainda mais demolidora…! Havia já claques, pequenas, favoráveis a Angola e ao
Brasil, mas não eram fixas nem fanáticas, duravam o tempo do percurso entre os
dois Continentes.
- Digam lá ao senhor Aleixo, que tenho dúvidas de que houvesse tal
borboleta, e digam-lhe também que no Congo, mesmo pegado a Angola, numa caçada,
nos apareceu um elefante tão grande, tão grande, muito maior que a igreja, com
torre e tudo – eia! Exclamou um dos miúdos – que deu um peido tão grande e mal
cheiroso que se ouviu em Luanda e o cheirete disseram que chegou ao Brasil e se
notou mais no domingo de Carnaval, mas ninguém suspeitou que fosse daquele
elefante, pois não sabiam que havia tal animal!
O grupo de quatro, entre eles eu, na altura protagonista e agora narrador,
desatou a correr e iam comentando baixinho, um deles a dizer para o mais
próximo – “ eu não quero nunca ir prá África, cagava-me todo com medo!
Mal o senhor Aleixo nos viu a dobrar a esquina, perguntou, fingindo
espanto:
Ainda voltaram? Não me digam que o ti Ari…?
E contámos, sem nada aumentarmos, a aventura do elefante e do mau cheiro
que chegou ao Brasil!
- Mas não vos contou que o elefante dele, mal o cheirete chegou ao Brasil,
uma jibóia – sabem o que é uma jibóia? – “é uma cobra grande, disse o
Antoninho”, pois é, mas esta que eu vi, devia estar escondida na floresta do
Amazonas, já ouviram falar? Isso mesmo, uma floresta virgem, devia ser a
primeira vez que deixou a floresta, vi-a arrastar-se em direcção ao mar e por
aí continuou até que passou toda ara dentro de água, mas levou um dia e uma
noite a passar, foi a que foi ao Congo dele e lhe engoliu inteiro o elefante!
Gargalhadas dos mensageiros e cada um para sua casa, a correr e a rir!
Eram muitas mais, a maioria delas não recordo e estes exemplares é só para,
a esta distância temporal, se pode tirar a lição de que até com exageradas
mentiras se aprende.
III
O ti Ari, mesmo que vivo fosse, não iria ficar melindrado por meter no seu
espaço de mestre, uma pessoa que nada tem a ver com ele, apenas são da mesma
aldeia e ambos deram a sua contribuição para a cultura geram dos seus
conterrâneos. O ti Ari e o senhor Aleixo tomaram a seu cargo a camada juvenil e
a outra, de que vou falar de seguida, foi dos adultos, melhor dizendo, das
adultas, por serem só mulheres que acompanhavam a aula.
A tia Filomena Caçote, irmã mais nova de minha mãe, terceira dos quatro,
três mulheres e um homem, é a pessoa que a seu cargo tomou a classe etária mais
idosa para satisfazer seu gosto pela leitura.
Se as duas irmãs mais velhas, a minha mãe e a tia Meliana, não sabiam ler
nem escrever, a tia Filomena e o ti Zé Caçote já foram à escola, pois ambos
liam e escreviam.
Como já disse antes a minha tia Filomena, entre o normal saber da maioria,
ela tinha uma a virtude de gostar de ler. E lia. Nunca soube e agora é tarde
para saber, onde ela ia buscar os livros que ia lendo a grupinhos de iletrados,
ao serão, nomeadamente Camilo e Júlio Dinis, são destes autores que me lembro
melhor, com o Amor de Perdição e as Pupilas do senhor Reitor e Fidalgos da Casa
Mourisca.
Quando a necessidade de rigor ultrapassar este quase sagrado e saboroso
segredo, eu tentarei saber de onde vinham os livros. Prometo.
Até lá, tia Filomena, vamos ficar com esta grande admiração que sempre tive
por si, em primeiro lugar pelo iniciático prazer da leitura que deve ter sido o
catalisador do que eu fui anos depois seu seguidor e em segundo por ter andado
anos de mal com a sua vizinha mais próxima, de quem era amiga, tudo por minha
causa, quando na disputa de um espaço de criança para a construção duma
casinha, eu terei bulhado com o Manfredo e o irmão mais novo, o Albertino e que
a mãe deles foi a correr separar-nos, pegando-me num dos braços e atirando
comigo pelo ar, como quem lança lixo para a rua. Discutiram ambas e assim
passaram de amigas a inimigas.
E admiro ainda o avanço das suas ideias se comparadas com as dos outros do
seu tempo, ao promover a ida da Julieta para a Guarda a especializar-se como
auxiliar escolar e vir de lá com a trança cortada, ou sem trança, provocando a
ira do ti Zé Relvas, pai da Julieta e meu tio por afinidade.
Reis Caçote
Dig/23/01/14
O TI ZÉ DO “ORGAL”
I
Seu nome era José Monteiro e Orgal seria forma de tratamento, penso que por
ter nascido naquele lugar, único pertencente à freguesia de Castelo Melhor e
que se situa a cerca de quatro quilómetros e onde passava o caminho que ia dar
à foz do Côa, hoje transformado em estrada que vai dar à ponte sobre o rio
construída ainda no século XX
Não são muito claros os dados, nem para o que pretendo fixar tem a menor
importância, não estou a fazer nem a escrever história, mas sim tentar que se
não perca de todo a passagem pela vida de pessoas que, por alguma forma
marcaram e contribuíram para o que eu sou, mal ou bem. O que se sabe é que um
parente próximo de meu pai, dum outro ramo da família dos Monteiros, se terá
fixado no Orgal e de lá terá vindo o ti Zé, que veio a casar com uma filha da
família dos Guerras, a ti’Ana Guerra.
Nunca perguntei quem primeiro terá chegado aquele cantinho onde eu nasci,
se os meus pais os se o ti Zé do Orgal e esposa, mas se atentarmos que a
cumeeira da sua casa está apoiada na parede da de meus pais é possível deduzir
qual terá sido.
Ao contrário da nossa, a casa deles tinha só um piso e do lado de baixo
havia uma porta que dava, através de uns quantos degraus de escada, para o
largo da forja do ti Antoninho Ferreiro.
Conheci os dois filhos do casal, um homem e uma mulher, já entrados na
idade, o homem já com um filho da minha idade, o Sérgio, que foi para Lisboa,
cerca de um ou dois anos depois de mim e tendo como intermediário o meu irmão
Licínio, a pedido da família dele.
O ti Zé do Orgal era um homem maciço, a tender para o gordo e pouco mais
fazia do que a ida à horta e esperar pela colheita de umas terras que teria e
que não sei se eram muitas se poucas, foi assunto a que nunca dei nenhum valor,
talvez porque só tínhamos uma courela e outra maior, juntamente com meus tios
paternos, resultante da herança não partilhada, mas não deixando de ser
estranho, sendo ele o vizinho mais próximo e ainda parente! A verdade é que
dele me terá ficado a recordação da sua faceta menos importante, mas para mim,
de certeza, a mais hilariante!
II
As refeições de quem trabalhava no campo eram sobretudo duas: o almoço, ao
amanhecer, suficientemente substancial, em valor energético, para manter
alimentado e com energia, um organismo que iria ser sujeito a um desgaste
físico violento, quer fosse a cavar, a roçar, a lavrar, a ceifar, a varejar ou
outro trabalho, até cerca do meio-dia, hora a que, sobretudo no Verão, era
comida a merenda, composta de uma ementa muito ligeira, à base pão com
azeitonas, ou figos secos e em dias especiais, umas pataniscas de bacalhau ou
um pedaço de chouriça ou presunto, aqueles que tinham criado porco para abater.
Seguia-se normalmente um período de descanso, mais dilatado no Verão, pois
não é pera doce aguentar a ferocidade do Sol que pelas soalheiras se incendeia!
A refeição da noite, lá designada por ceia, era novamente mais equilibrada,
com o caldo de couve ou outro e algo mais que houvesse, carne de porco da
salgadeira, um ou outro enchido, sardinha salgada só havia uma vez por semana e
algumas nem aparecia a vendedora, vinda de Foz Côa. Carne fresca era uma
raridade! Quem tinha dinheiro para a comprar, porque carne e sardinha não era
por avença, era paga no acto, fazia sua encomenda e quando o matador via que a
vendia toda lá matava cabrito ou borrego e vitela só mandando vir de Foz Côa ou
da Figueira, de Castelo Rodrigo, mas para todos Figueira bastava para saberem
de que se tratava.
A ementa variava, naturalmente, de casa para casa, o que será o mesmo que
dizer, de família para família: mais rica e variada, as mais abastadas, mais
simples a das famílias mais pobres.
O ti Zé do Orgal devia fazer ceias opíparas ou então a ti’Ana Guerra, sua
cozinheira, não variava muito a ementa e era frequente, logo após a refeição,
ainda na cozinha, ouvir-se uma sessão de imprecações; o que se ouvia primeiro,
vindas da ti’Ana “já estás a começa?!Ralhava ela “e logo de seguida ele ria à
gargalhada! A ti’Ana protestava, agora contra a gargalhada também! Quando mais
alto ela gritava, mais sonora era a gargalhada dele! Ela excomungava-o e ele
ria quase convulsivamente! Mudava o insulto e com a mudança parecia mudar
também o som da gargalhada e assim, sucessivamente: ele peidava-se e ria, ela
insultava-o e ele ria! E voltava a peidar-se!
“Não tens vergonha?! Dizia ela” e a resposta era nova gargalhada dele,
agora já noutro cenário, a saírem de casa! O riso comprimia-lhe o volumoso
estômago e o desabafo do intestino encontrava a saída natural, o ânus. No verão
a maior parte das cenas eram fora de casa, ele sentado num banco corrido,
encostado à parede do espaço, também deles, onde guardavam os seus materiais,
nomeadamente a lenha e os cereais e artefactos da pequena lavoura que ela
fazia.
A vizinhança, anos e anos a ouvir a mesma “sinfonia” não levava a mal e
muitas vezes até animava o espectáculo com os seus comentários que para o ti’Zé
do Orgal eram como aplausos! Mal reparavam que aquele ventre saliente se
inclinava para o lado e uma das nádegas (lá eram nalgas) ficava aliviada do
banco, já sabiam que era mais uma “trovoada” a chegar e a maldições da ti’Ana!
“Oh, maldito homem, não tem respeito por ninguém, sejam velhos ou novos, é uma
pouca-vergonha” Ele ria com esta linguagem da mulher e o esforço de rir,
sentado, aumentava as manifestações intestinais.
Um ou outro vizinho mais divertido, sobretudo nas noites de calor intenso,
em que todos saiam de casa na esperança vã de uma brisa que não chegava,
ajudava à brincadeira, com a sugestão: “os mordomos das festas do Anjo e da
Senhora do Rosário bem podiam poupar na despesa dos foguetes e dispensar o
fogueteiro, pois o ti Zé resolvia o problema e de borla!” Então as gargalhadas
eram gerais e o ti Zé, duplamente divertido, levantava a nalga e libertava um
isolado, bem sonoro e redondinho e ela dizia, rindo sempre “lá foi mais um
morteiro”! Gargalhada geral daquele recanto, agora sem viv’alma e que nessa época
moravam, o ti Zé e a ti’Ana, meus pais, eu e o Ernesto, minha irmã e meus 2
sobrinhos, a família dos Morras que eram quatro, a família Chanisca e três
filhos e ainda uma família de quatro também, mas que não recordo o apelido a
seguir, do lado do ribeiro, mas com entrada pelo pequeno largo, a ti’Ana do
Ferreiro, a dona das terras dos minérios e o marido e pegado a eles a família
de um dos filhos, donos de uma das lojas de mercearia e os habituais bens de
retrosaria, petróleo, vinhos não vendia e que eram mais quatro.
E o ti Zé de Orgal lá continuava na sua festa e a ti Ana Guerra, fazendo
uma guerra de impropérios contra o marido: “ oh, desgraçado, era já mais um
lamento da ti’Ana, cansada” e a resposta era mais um foguete de várias bombas!
Foguetes do ti Zé, insultos da ti’Ana, horas a fio, noites a seguir a outras,
até que, já cansado e aliviado, despedia-se “ até amanhã, fiquem com Deus”, mas
não sem antes fazer estoirar mais um ou dois no trajecto até casa e dizendo,
rindo com vontade, “estes são para a sossega!”
Por vezes a ti’Ana, cansada de tanto barafustar, ia ditar-se antes do
marido, mas a festa continuava e ele comentava
“ Sem ela a ralhar até os peidos não saem tão bem!”
Reis Caçote
https://youtu.be/dll3Ydcmm4k?t=3
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