ALGUM ESPAÇO TERIA QUE SER DESTINADO AO PERIODO DE PERMANÊNCIA EM ANGOLA - JULHO DE 1961 A OUTUBRO DE 1963, RICO EM EXPERIÊNCIAS! COMEÇANDO PELA CHEGADA:
Agradecemos por despenderes tempo no
envio dest
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CHEGADA A ANGOLA
I
O monstro marinho
que nos engoliu em Lisboa na manhã de vinte e oito de Junho de mil novecentos e
sessenta e um, após dias e noites consecutivos de difícil digestão, vomitou-nos
em Luanda, na madrugada de seis de Julho.
Seríamos
cerca de dois mil e quinhentos, num espaço concebido para mil e quinhentos!
Para que o "milagre" fosse possível, os porões foram transformados em
camaratas, de catres dimensionados para o corpo de um individuo de estatura
mediana; devido a essa economia espacial alguns mais compridos, a altura é para
os que estão em pé, ficavam com os pés de fora a atravessar a passagem mínima,
a fingir de corredor, e outros em que as adiposidades sobravam para os
camaradas que moravam nos tabuleiros dos lados.
Ao segundo
dia de viagem era já sórdido o espaço dos porões, onde mil milionários, em
cruzeiro de mar, foram metidos; a mistura de aromas, ácidos e nauseabundos, do
vomitado, vinha de todos os lados daquela fossa sem ar renovado, situados muito
abaixo da linha de água, com tudo o que se parecesse com saneamento entupido e
a escorrer para o pavimento, não preparado para acomodar pessoas, mas sim
mercadorias, ou seja a carga.
Muitos não
conseguiam sequer sair da tarimba, tal era o seu estado de prostração, depois
de dias seguidos a não conseguir parar o vómito do nada que havia no estômago!
Talvez as glândulas, mesmo que não estimuladas, produzissem algum suco
gástrico, que aumentaria a rejeição pelo estômago vazio. Os que conseguiam
levantar-se, invadiam tudo o que fosse espaço fora daquele antro de podridão,
ficando para ali estiraçados, horas a fio, sem forças nem vontade para voltarem
ao vomitado espaço.
O espetáculo
era deprimente! Os filhos dos navegadores que deram novos mundos ao mundo, ali
derrotados aos primeiros baldões do monstro.
Esta
situação de caos era vivida sobretudo pelos soldados e cabos. Os oficiais
estavam lá no alto, na primeira classe e os sargentos na segunda, enlatados
entre o vómito e a festa, se festa houvesse! Havia mais conforto; os soldados
tarimbados, os sargentos belichados e os oficiais deviam ter espaços mais
confortáveis, não sei, não vi, mas não acredito que os camarotes, antes
destinados a casais, não fossem agora ocupados por dois oficiais! O raciocínio
que faço tem a ver com a minha própria situação durante a viagem: sabemos todos
que a hierarquia funciona, tanto na vida dos civis como na dos militares, estes
identificados com as insígnias respetivas, na vida civil deve ser traduzida
pela forma do seu comportamento, ora pelo seu meio de transporte, de sua
habitação e do seu modus vi vendi geral.
Quer na
classe dita civil, quer na militar, as classes são bem definidas, foram-no em
todas as épocas. Por isso, quando alguém falou em luta de classes não estava a
criar uma nova forma de vida, era com o desfecho dessa luta que a forma de vida
será criada.
Dentro de
cada classe militar há a hierarquia e dentro de cada estrato funciona a
antiguidade, talvez por isso se diga, quase sempre ironizando, que a
antiguidade é um posto! Este pormenor da antiguidade foi aqui abordado para
denunciar o que comigo ocorreu, sem que para tal tenha contribuído.
O camarote que me foi destinado, situado junto à proa, tinha
duas camas individuais, roupeiro, telefone e um grande espelho, e mesa com
gavetas, tapete que cobria quase todo o chão disponível do camarote! Eram os da
classe turística, não sei mais para explicar por que tinha essa distinção, uma
vez que um paquete devia ser para transportar turistas e só por força da
guerra, ia atestado de militares.
.
Para o mesmo camarote foi destinado o furriel Magalhães, amanuense,
segundo soubemos depois, por que o segundo sargento Sousa não tinha embarcado,
por motivos de doença; o primeiro-sargento Botelho e o furriel Figueiredo
ocuparam o outro em frente, que devia ser igual, mas que nunca cheguei a ver.
O Pelotão de Comando e Serviços, cento e cinquenta e sete era
formado por vinte e um elementos, sendo eu o único da Arma de Artilharia, com a
especialização de munições e a função era, ou seria, organizar o paiol das
munições e fazer o reabastecimento das três baterias que compunham o Regimento:
as cento e quarenta e cinco, quarenta e seis e quarenta e sete.
Depressa nos apercebemos que o camarote iria ser um ponto de
reunião dos camaradas que frequentaram o mesmo Curso de Sargentos Milicianos,
em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, alguns da especialidade de
munições, teoricamente ministrado por três oficiais, no Regimento de Artilharia
Pesada, numero um, em Sacavém e outros meus conterrâneos, como era o caso do
Aníbal Albuquerque Soares, colega na Escola Primária de Castelo Melhor, que
entre nós o tratávamos por Aníbal de Foz Côa, certamente por ali ter morado com
os Pais, antes da separação destes; esteve a morar em casa do tio, o senhor
Cassiano de Albuquerque, meu padrinho de batismo.
O Aníbal deve ter estudado no Porto, porque não mais o vi,
depois de ele deixar Castelo Melhor e eu ir para Lisboa trabalhar. Como tinha
uma constituição física bem desenvolvida deve ter escolhido a modalidade da
ginástica de forças combinadas, sendo ele o base e o volante, que também seguia
no mesmo “carregamento” a Vera Cruz. Deve ter iniciado pelo Culturismo e
passado para a modalidade mais consentânea com a sua compleição física, pois
tinha um desenvolvimento muscular bem marcado, mas isto não passa de dedução
minha, que também ensaiei o culturismo em Leiria, mas só durante uns três
meses, quando estive em Leiria, antes de ser mobilizado para defender a Pátria,
pois então!
Uma das noites em que o Araújo, camarada do Curso em Vendas
Novas e depois em Sacavém, foi fazer uma visita ao meu camarote e levando uma
garrafa de aguardente para entreter a conversa ou, como ele gostava de dizer,
lubrificar a goela, viu os elásticos do Aníbal que, desde que nos encontrámos
no Vera Cruz, ficavam sempre no meu espaço, por ser mais seguro que a camarata
e ser ali que ele ia aquecer a massa muscular nos dias em que o tempo ou o mar
não permitiam tal ao ar livre, atirou-se a eles, aos elásticos como se tivesse
recebido uma bicicleta no Natal!
Araújo, não abuses, recomendou o Aníbal, senão não vais
sentir os efeitos a partir de amanhã! O Araújo continuou nas suas repetições e
comentando: qual o quê, tu só tens é físico, mas eu sou do Porto e não temo as
consequências!
Tal como previsto, nos dias seguintes não assistimos às
sessões de ginásio do Araújo! E quando no restaurante ele se queixava, bastava
simular um soco no estômago para ele se encolher e dizer uma quantidade de
palavrões dirigidos aos elásticos, a quem os inventou e a mim por os ter no
camarote! Era uma festa, toda a periferia da nossa mesa ria connosco e assim
esqueciam para onde íamos.
Se ao Aníbal não mais vi, ao Araújo voltei a cruzar-me com
ele em Setembro desse mesmo ano, quando estive destacado na Bateria cento e
quarenta e sete, comandada pelo capitão Virtuoso, no início da Operação
Esmeralda, a da tomada da Pedra Verde, daí o nome da Operação! Foi no aeródromo
do Ucué, a terra do Sisal e também das madeiras. Era o Araújo que conheci,
sempre divertido e sarcástico fosse qual fosse a situação! Dele voltarei a
falar, quando tratar aqueles dias da “guerra”; por agora lhe desejo que tenha
organizado sua vida e ande lá pelo seu Puerto e pelo Dragon, como ele
pronunciaria e continue divertido e a divertir os que com ele convivam.
II
No dia seis de Julho, de madrugada, notei que o ruído abafado
dos motores era agora diferente, mais baixo e por isso menos audível; momentos
havia em que não se ouvia. Suspeitei que devíamos estar perto de Angola, de
Luanda, mas era apenas presunção, porque informação não havia.
Quando o dia clareou, ainda bem cedo, o monstro, já parado,
estava inclinado para um dos lados. Abri a porta do camarote e vi no corredor
daquele lado, uma azáfama de fardas, como formigas gigantes em direção ao
formigueiro ou a afastarem-se dele. Vesti-me às pressas e juntei-me à
“procissão”, não sem antes recomendar ao Magalhães, sempre com a inalterável
calma, que não se esquecesse de fechar o camarote se decidisse ir espreitar.
Dirigi-me, naturalmente, para o lado Da inclinação do navio. Todos os espaços na amurada estavam
sobrelotados e até nos salva-vidas havia fardas a espreitar! Estávamos noutro
Continente, mas no mesmo Oceano. E o que havia para ver? Um espaço, bastante
grande, entre o costado do Vera Cruz e os edifícios do porto de Luanda, onde estavam
empilhados uns milhares de sacos, enfarinhados de cor esbranquiçada, de onde
devia sair um cheiro forte e pouco agradável, que alguém identificou como
farinha de peixe.
Como não havia movimento algum, fiquei sem perceber se tinha
chegado ao destino ou se teríamos feito escala antes do porto de Luanda.
Sentado sobre uma das pilhas de sacos, estava um africano,
quase da cor dos sacos, tronco nu, descalço, apenas um calção vestido e que,
tal como a pele, se confundia com a cor da farinha que antes, ele e outros,
deviam ter estado a movimentar, antes da nossa chegada. Devia tratar-se de uma
paragem imprevista do trabalho, pois um pouco mais adiante, andando
vagarosamente e com ar contrafeito, um branco, de caqui claro e chapéu
colonial, parecia aguardar também. No cinto, uma pistola, dentro do coldre.
Foi esta a visão inicial da capital de Angola!
O tempo foi decorrendo e, perto das dez horas, a uns duzentos
metros de distância, fundeou o Príncipe Perfeito, na sua viagem inaugural,
também ele sobrelotado de militares, alguns para ficarem em Luanda e a maioria
seguiria para a costa oriental, para Moçambique, segundo soubemos depois. No
paquete que fazia sua primeira de tantas outras viagens, seguiam militares,
nomeadamente furriéis milicianos, que tinham negociado a troca com colegas que
estavam a desembarcar do Vera Cruz, tendo o negócio permitido uma margem de
tempo de duas ou três horas. Não valeu a pena a troca, mesmo que fossem para
Moçambique, onde as coisas estavam ainda pouco complicadas.
Tal troca também me foi proposta em mais que uma ocasião, mas
sempre recusei as propostas, talvez por que o “Arcanjo Gabriel”, habitualmente
de mim esquecido, me sussurrou ao ouvido: “não faças negócios com coisas que
tenham a ver com a guerra!” Ou por influência angelical ou por mero acaso, só
fui mobilizado quando a arma de Artilharia avançou para Angola. Tal como foi já
frisado antes, integrei o primeiro contingente de artilharia ligeira, no
Pelotão de Comando e Serviços número cento e cinquenta e sete, como responsável
pela manutenção e reabastecimento de munições, função apenas uma vez praticada.
Lá chegaremos!
Nunca percebi, nem fiz alguma tentativa para perceber,
perguntando, quem organizou o desfile de mil e quinhentos homens. De diversas
unidades e pelo menos duas armas, a de Infantaria e a de Artilharia. Mas que
alguém o fez e com rigor militar, não restam dúvidas, cerca das dez e trinta,
já marchávamos pela avenida marginal, com a baía ali ao pé, do lado direito e
mais ao longe, como continuação do desenho ovalizado, uma faixa de terra, com
algumas casas e árvores, era a Ilha do Cabo, soube mais tarde.
À esquerda os prédios, de vários pisos, com muitas das
varandas adornadas com colchas de várias cores e padrões, à semelhança da minha
aldeia, por onde a procissão da Senhora do Rosário passava, durante a festa
anual em seu louvor.
Quase todas as varandas tinham pessoas que aplaudiam os novos
defensores de Angola. E nos passeios também, algumas centenas de pessoas
aplaudiam, de certeza nem todos com o mesmo entusiasmo e convicção, mas isso não
tinha grande importância, muito menos naquela altura.
Chegámos em plena época do cacimbo, soube depois que ocorria
de Maio a Setembro; a outra era designada pela estação das chuvas.
O Sol não se via, mas o calor era intenso, não tanto pela
temperatura elevada, mas sim pela muita humidade do ar e a ausência de vento.
Eu nunca tinha entrado numa sauna, mas do que tenho visto sobre saunas, seria
este o ambiente de ma gigantesca.
E para que me não esqueça, fica registado que, em Luanda,
nunca vi um céu azul e um Sol brilhante, durante os vinte e sete meses que ali
permaneci.
A certa altura o desfile, desarmado, parou. Não recordo, com
tanta novidade a fixar, se o pequeno pelotão de Comando a que eu pertencia, era
o que encabeçava o desfile; do que me lembro é de que à nossa frente havia um
espaço razoável e nele circulava um miúdo, negro, apregoando os gelados que
trazia numa caixa a tiracolo: “ o rajá fresquinho, quem quer o rajá!”; como a
sede era grande, comprei e paguei um gelado que mal o meti na boca aparece o
capitão Calixto que, com ar grave e ordem firme, me mandou deitar fora o gelado.
E assim ficou registado, no meu cadastro mental, o primeiro incidente africano.
Outros viriam. Muitos!
Quando acharam, os que tinham esse poder, deram por terminada
a parada e mandaram-nos subir para camiões, uma boa parte deles de caixa
aberta, cada um levando a sua bagagem individual e eu muita curiosidade.
Contornámos Luanda, quase deserta, em direção a uma zona já no limite da
cidade, com vivendas de classe média do lado esquerdo e do direito uma extensão
de terreno, com o capim mal cortado.
Parámos junto a um edifício inacabado, de dois pisos,
rés-do-chão e primeiro e quase em frente, do lado direito da estrada, um
cemitério.
Soube, nesse primeiro dia, que o edifício inacabado seria o
futuro laboratório químico da Petrangol e no cemitério em frente, meses antes,
durante um funeral de uns policias, que terão sido mortos durante o tiroteio do
levantamento de quatro de Fevereiro, teria havido uma escaramuça.
Pormenores não havia, ou por que desconhecidos ou porque
seriam apenas do domínio de alguns e falar deles seria desaconselhado.
O cemitério era movimentado e muitas vezes, ou sempre, não
afirmo, a urna era coberta pela bandeira portuguesa e havia salvas de tiros de
espingarda.
Pelo espaço do laboratório, que não foi, nós nos fomos
instalando, pelo menos o pessoal do Pelotão de Comando e uma das três baterias.
A ideia que ficou é que para a primeira noite não se
arranjavam mantas para ninguém, mas no primeiro piso, de um dos lados,
destinado à classe de sargentos, era um salão grande, com enxergas de lona,
encostadas umas às outras, assentes no pavimento que era em cimento, apenas
afagado. Para se chegar às do fundo, onde iria ser construída uma lareira,
tinha de passar-se por cima das outras, eram um tapete de enxergas, com areia
trazida pelas botas que a iam trazendo do chão inacabado.
A decisão foi a de dormir vestidos. E assim se fez, sem
grandes resultados no que toca a dormir, por que, mal parámos para dormir e até
mesmo antes de pararmos, fomos atacados por uma densa e esfomeada esquadrilha
de melgas que não nos deu tréguas a noite inteira.
Para aquela gigantesca esquadrilha de insetos, nós devemos ter
sido uma bênção que o deus dos mosquitos lhes deve ter preparado e eles, como
pagamento antecipado da refeição, ofereceram-nos um concerto de violino que não
soubemos agradecer. Pelo contrário, resistimos como pudemos ao cerrado ataque,
causando centenas de baixas que parecia ressuscitar de imediato e retomavam o
ataque, porque não nos apercebemos de que amainasse em número e agressividade!
E, assim, fomos um inesperado banquete para aquele enorme grupo de melgas de
África.
Só com o alvorecer é que o ataque amainou! A noite foi toda
ela de vigília, sem intervalos! Posso afirmar hoje, distanciado dezenas de
anos, que foi o mais violento ataque de que fui uma das vitimas, em todo o
tempo de campanha de Angola. O mais feroz, mas não o que mais me assustou, fique
claro.
Os inacabados edifícios que nos hospedaram na noite de
núpcias da guerra ficavam, como terei dito antes, para lá da última vivenda
que, do lado esquerdo da estrada que vai para Catete se alinhavam, todas iguais
e abandonadas, ou melhor, desabitadas.
Em frente era o tal cemitério, última morada dos que, por um
ou outro motivo, se foram distanciando da guerra e da vida. Nas traseiras dos
edifícios estendia-se um campo plano, com capim rasteiro e ressequido e um
pouco mais adiante era o aglomerado de cubatas de um dos musseques que
envolviam toda a cidade, exceto a frente para a baía e o mar. Estes aglomerados
de pequeníssimas construções, habitadas apenas por africanos, mudavam de nome,
mas as fronteiras não estavam definidas para quem não conhecesse o meio.
Como estávamos em território de guerra, o Comando decidiu que
devia ser organizado um sistema mínimo de segurança, com sentinelas e um
piquete para fazer rondas de duas em duas horas.
Ficou por dizer que, ainda no Vera Cruz, oficiais e sargentos
tomaram contacto com uma nova arma que iria ser distribuída aos operacionais, a
pistola-metralhadora UZI, de origem israelita.
Durante a primeira noite, a segurança montada, já incluía o
piquete e o oficial e sargentos iriam já armados com essa arma, sendo
distribuída aos que nessa noite estavam escalados! A secção de serviço tinha
uma tenda do tipo casa da guarda.
O natural seria, cada um servir-se da sua arma, que era a que
lhe foi distribuída e não a de outro, por isso mesmo tinha o seu número e que era
ele que dela devia cuidar e guardar, era a sua arma.
Quando fosse entrar de serviço carregaria a UZI com as vinte
e oito balas e quando regressasse retirava o carregador. Uma coisa é
estabelecer a forma, ou regra, ou principio, outra bem diferente era cumpri-la.
E, assim o que fez a última ronda da noite, ou devido ao sono ou à imprudência
que está quase sempre à espreita, em vez de pegar na sua arma foi a que estava
mais à mão, iniciando a violação do princípio estabelecido, meteu o seu
carregador e foi fazer a ronda. Quando regressou, continuou a violar a regra de
segurança, ao não retirar o carregador, indo dormir deixando a arma carregada.
A arma que não era a sua, era apenas igual, mas o número era diferente.
Programado estava para a manhã qual dos furriéis iria
apresentar a UZI e explicar o seu funcionamento a duas secções da bateria que
também ocupava o espaço comum.
Reunido o grupo em semicírculo, iniciou a aula, naturalmente
convencido de que tudo estava como tinha preparado, portanto a arma seria a sua
e descarregada, como a tinha deixado, com o carregador vazio. Enganou-se!
A UZI estava com a segurança ativada, mas o carregador, que
devia ser o seu, sem munições, era o que foi colocado pelo último que esteve de
serviço, levou a arma que não era a sua e nela deixou, quando regressou à
tenda, o seu carregador municiado, inadvertidamente.
Assim que a aula chegou à fase do uso para disparar, a arma
começou a despejar o carregador, em rajada, atingindo três instruendos, um numa
perna, outro na clavícula e o terceiro, só de raspão, numa perna também.
O pânico instalou-se no grupo, o furriel ficou em estado de
choque a olhar para a UZI como se nunca a tivesse visto, certamente a nem
pensar o que outros pensaram: uma unidade acabada de chegar, ia tendo as
primeiras baixas. Os atingidos, assistidos pelos enfermeiros, seguiram para o
hospital militar que se situava bastante perto.
Os que não tinham presenciado, ouviram a versão e avaliaram o
que podia ser a dimensão da tragédia.
Apenas como nota de um humor de mau gosto, mas que foi parte
integrante do ocorrido e da miríade de situações bizarras que porventura muitos
iriam viver e alguns viveram já antes de chegarmos. Quando tudo estava a ficar
calmo, apenas um ou outro a querer saber qualquer pormenor que não entendeu,
ouviu-se um dos cozinheiros, quase aos gritos, dizer que algumas balas tinham
atingido o panelão da sopa que estava ao lume e que se transformou num “repuxo
de jardim” de onde saiam dois jatos de caldo a fumegar.
Era inevitável que alguns sorrisos aflorassem, o meu
incluído.
O resto do dia foi de grande azáfama, sobretudo para os
amanuenses e responsáveis pelo aprovisionamento dos vários materiais.
Do Pelotão, os mais sacrificados foram o tenente Neta e o
furriel Magalhães, tiveram que arranjar forma de irem procurar mantas para
usarmos nessa segunda noite, pois arrefecia bastante devido à muita humidade do
ar.
O outro pessoal foi-se revezando no visionamento dos
materiais que iam chegando, nomeadamente as armas individuais, obuses e outros
materiais de campanha que deviam estar já em Luanda quando chegámos, vindo em
um dos vários Carregueiros ao serviço da guerra.
A minha secção, de munições, composta por mim e seis
motoristas, ainda sem motor, estávamos no desemprego, não tínhamos munições nem
paiol para as acondicionar, assim como não tínhamos camiões, nem faziam falta,
as três baterias continuavam em Luanda e também não precisavam ser
reabastecidas; íamos participando noutras tarefas, apenas.
Nesse segundo dia, ao fim da tarde, apareceu em frente dos
edifícios por nós ocupados, com ar de quem está fora do seu território, mas ao
mesmo tempo alegre e desenrascado. Correspondeu ao meu cumprimento, abanando o
coto do rabo e de imediato me adotou, seguindo-me para todo o lado.
Nada que se parecesse com um cão terrorista, se algum
houvesse, pelo menos não constava. Uma hora depois já todo o pessoal comentava
que o furriel Monteiro já tinha adotado um cão africano. Eu é que fui escolhido
pelo pequeno pinscher malhado.
De uma mochila cortei um pedaço de uma das correias e dela
fiz uma coleira e como não sabia o nome do primeiro amigo, sem cerimónia, “aqui
te batizou com o novo nome - Comandante “
que escrevi na coleira nova a preto e bem visível.
E, assim, fiquei com um cão que me adotou, fizemos amizade,
dei-lhe nome, escrevi-o na coleira, tudo improvisado; ele, como eu estávamos
longe do território, numa guerra que não era a dele, nem a minha.
Mal sabia eu que a brincadeira ia dar chatice! E só não deu
porque o major, Comandante do Regimento, sendo militar na forma de trato, era
humano e compreensivo nas avaliações.
Um dos oficiais, do tipo guerrilheiro de má-língua, achou que
o criador da coleira estava a apoucar a patente do major e sua condição de
Comandante e essa interpretação teve como resultado imediato ser chamado, como adotante
e padrinho do canídeo, ao gabinete do senhor major, onde este me perguntou o
que eu pretendia insinuar com o que escrevi na coleira?
Fiquei pasmado, pois não tinha pensado em tal coisa e como eu
também era um comandante, da secção de munições, quando muito teria querido dar
uma graduação ao amigo peludo, para poder circular à vontade o que como civil
não podia! Um sorriso aflorou ao rosto do major e a sentença foi: “furriel
Monteiro, vai a tua vida, mas tira a coleira ao animal ou apaga o que
escreveste!”
Ou por que se apercebeu do incidente e de que alguém devia
não gostar dele a ponto de ser despromovido, resolveu dar à sola sem se
despedir, levando para onde foi, uma coleira de lona e o nome que não era o seu.
No dia seguinte apareceu um casal de civis à procura do cão,
alguém lhes terá dito tê-lo visto por ali, oferecendo quinhentos angolares para
recuperar o pinscher.
Dei conta ao casal do que se tinha passado e que o animal
tinha desaparecido no dia anterior, sem se despedir e com uma coleira de lona
ao pescoço com a inscrição “Comandante” por não saber qual o nome do simpático pinscher.
Fomos nós que oferecemos ao nosso filho no dia do seu
aniversário e ele lhe tinha dado o nome de Mozart, em homenagem ao grande
compositor, que o nosso filho admirava e ao piano executava, parece que com
mestria, algumas das suas obras para piano.
Prometi que se voltasse a aparecer lhes comunicaria, mas não
mais voltou. O Mozart, de pelo.
O compositor desaparecera muito antes, mas o seu nome e a sua
obra continuam bem vivos, no piano a solo e nas mais diversas orquestras de
todo o mundo. E está para continuar!
Ao sétimo dia, não aquele em que deus descansou, para
contemplar a obra de sua criação, alguém terá decidido que o Pelotão de Comando
e Serviços iria mudar-se, de armas e bagagens para o Grupo de Artilharia de
Campanha de Luanda (GACL), cujas instalações ficavam no topo da colina que se
inicia junto ao rio seco, que serve de fronteira entre a Maianga e o Alvalade,
e termina no planalto sem fim, que ali se estendeu talvez para descansar da
subida e se estende para o interior, pelo menos até Catete, a setenta
quilómetros de distância.
A colina é uma duna de areia, pedras sedimentares e terra
vermelha, que se terá formado quando Neptuno se acalmou e mandou os mares
recuar para o espaço que hoje ocupam, mais ou menos.
O Alvalade estava destinado a ser um bairro para a classe
média alta, só com vivendas, mas que a guerra terá interrompido e só uma estava
construída e não concluída, esse era o aspeto exterior. Não sei como está hoje,
mas era um terreno de ótima situação, virado a Sul, com boa exposição ao sol e
relativamente perto dos hospitais, civil e militar.
Bem no alto do lado poente estava inacabado também o único
edifício com dez pisos, certamente para ser vendido em regime de propriedade
horizontal e que o inicio do conflito terá interrompido.
A mudança do Pelotão para o GACL era provisória, diziam os
oficiais, mas a verdade é que nenhum deles disse quando, quase todas as semanas
iam dizendo que na seguinte iriamos, não sendo dito para onde iriamos e a
verdade é que vinte e sete meses passados estávamos ainda sediados no mesmo
local.
E a guerra em nada foi perturbada!
III
As colchas nas varandas da marginal não deviam sequer ser
guardadas, tal o ritmo de chegada de militares por via marítima; outros por via
aérea, oficiais superiores, sobretudo e especialistas, médicos e auxiliares,
também os que vinham a preencher os lugares de baixas em combate ou acidente e
que não podiam demorar os oito dias feitos por mar.
Se as colchas nas varandas eram a forma simpática de nos
saudar os que ali moravam, noutros pontos da cidade a forma de simpatia era
diferente, ora oferecendo transporte da Petrofina para a cidade ou desta para a
Petrofina: eles é que tomavam a iniciativa de nos convidar.
Não tardou muito para que algumas dessas gentilezas se fossem
alterando e assim confirmando a minha desconfiança acerca da franqueza dos
gestos, baseada num pequeno incidente com um taxista!
Apanhei-o junto ao GACL e disse que queria ir para São Paulo
onde ia jantar com o amigo José Manuel, enfermeiro no Hospital Militar, sendo
dos primeiros a ser chamado, deixando o Hospital da Estrela, em Lisboa, onde
fui diversas vezes quando ele estava no turno da noite. O taxista, em vez de
seguir em frente para o local de destino, virou à esquerda em direção ao
Hospital Militar, continuando a descer até ao Largo da Maianga e continuou pela
Serpa Pinto em direção à Mutamba!
Aparentando uma calma que já tinha esgotado, disse-lhe, como
quem pede: quando se cansar de me mostrar a cidade, agradeço que me leve até
onde pedi, a São Paulo!
Apanhado de surpresa, começou por dizer que “se tinha
distraído”, para depois mudar o alibi para “sou taxista há pouco tempo”
Passados cerca de dois meses, eram centenas os militares a
circularem pela cidade, a pé ou em viaturas que nem sempre, ou mesmo raramente,
respeitavam as regras e as viaturas civis seguiam o exemplo, aliado aos
desacatos noturnos de que eram protagonistas alguns militares, quase sempre
embriagados, acrescido da escassez de alguns bens que o excesso de procura
naturalmente provocou, começámos a aperceber-nos que a simpatia estava a virar
para antipatia, não expressa por atitudes claramente ostensivas, mas pela
indiferença e o fim da cooperação espontânea.
Numa das vezes que fui assistir à chegada de mais um
contingente, reparei que as colchas eram agora bem menos, os passeios com meia
dúzia de curiosos e os aplausos tinham passado de moda.
A guerra era a Norte e não em Luanda, comentava-se à boca
pequena! Vieram defender-nos dos terroristas ou fazer turismo para Luanda? Mas
todos os dias viam, como eu via, no ar, os Heli numa roda-viva a chegarem com
macas laterais, em direção aos hospitais, para logo partirem em nova missão. A
isto não ligavam, passava-se longe do seu olhar “critico”.
Em alguns ramos de comércio houve franca prosperidade, assim
como em indústrias, nomeadamente da cerveja e do tabaco, que eram as que
conhecia melhor e eram óbvias as melhorias.
Com a debandada dos residentes habituais, foram os militares
quem dinamizou e de algum modo alterou os hábitos: nos cafés, restaurantes,
pensões e casas particulares, assim como espaços de “diversão” noturna que
surgiam como cogumelos.
A prostituição aumentou em progressão geométrica, tanto a
indígena como a que diariamente chegava de vários pontos.
Bem vistos os prós e contras, eram bem mais os que lucravam
com a presença dos militares do que a dos que perdiam. Descontentes sempre os
houve e não seria a Luanda daquela época a exceção à regra.
Com a nossa instalação no GACL, o Estado deixava de assumir a
responsabilidade do alojamento e da alimentação, a oficiais e sargentos não em
operações.
Havia uma messe para os oficiais, próxima do Quartel-general
e para os sargentos funcionava também um refeitório, onde só fui uma vez e
funcionava ao fundo do espaço relvado em frente do Liceu Pedro Nunes, às
Ingombotas.
Funcionava muito mal, segundo diziam os camaradas que dele se
serviam e que eram quase só militares do Quadro permanente. O edifício era
quase novo, mas não construído para aquela função.
Começámos a procurar restaurante e habitação, tendo o
primeiro sido junto ao cinema Restauração, de que não recordo o nome. Foi curto
o período.
Alguém nos informou haver uma família que fornecia alojamento
e habitação, na Rua da Maianga. Eram de Tomar, tinham dois filhotes pequenos e
dois criados africanos, adolescentes, rapaz e rapariga. Acertámos o preço e
ficámos os três furriéis do Pelotão: o Figueiredo, o Magalhães e eu e mais um
colega conhecido do Figueiredo, o furriel Pinto, filho de um comerciante na localidade
junto das Minas de Jales. A camarata deve ter sido a sala principal do primeiro
piso da vivenda.
Estivemos ali mais de um ano, exceto o Figueiredo, que foi
morar com o alferes com quem trabalhava, na contabilidade.
Com a saída do Figueiredo ficou livre um dos divãs, que
raramente estava desocupado! Como funcionava não sei, mas era adotada quase
todos os meses, por sargentos, ou em gozo de férias, ou em tratamento que
implicava períodos mais longos de permanência em Luanda, ou andavam a procurar
outra solução mais equilibrada os que queriam mandar vir a família. Os
resistentes, mais por despreocupação do que por nos sentirmos bem, eramos os
três: eu, o Magalhães e o Pinto.
O primeiro café que à noite nos atraiu, foi o Polo Norte, ou
por termos passado e visto, ou por algum já instalado há mais tempo, ou até
pela provocação que o nome parecia ser. Polo Norte quase no Equador e calor
abafante como o de Luanda, só podia ser…o café de luxo. Não era, durou pouco,
logo nos cansámos!
Na casa da Dona Rosa fazia as refeições um individuo com um
pouco mais de trinta anos, gerente do Café Bracarense, junto ao Largo da
Maianga. Ou por ser nosso companheiro nas refeições ou por ser junto deste café
que os autocarros civis paravam e seguiam para a zona dos quarteis, passando
pelo Hospital Militar e o autocarro militar ali para também, passámos a ter ali
o ponto de paragem e de encontro! Era a área de serviço usada nas modernas autoestradas!
Servia excelentes pregos no pão ou no prato.
Durou até ao último dia de Luanda!
IV
Com a pensão completa, incluindo o tratamento da roupa e o
local de paragem para o tempo de lazer após as refeições, tudo indicava que a
vida de Luanda ia transformar-se numa cansativa rotina, sobretudo para as
noites. Cinemas eram três os que funcionavam e um era mais virado para o
teatro, que raramente havia!
O Restauração, era um belo edifício da Avenida, cujo nome não
recordo, paralela à Serpa Pinto e apenas como ponto de referência, tinha uma
estátua ao general Norton de Matos, coisa que em Portugal penso que não tinha,
talvez por ter concorrido a umas eleições presidenciais com o candidato do
regime, o general Carmona.
O Colonial, também num edifício próprio, situado na Rua Pedro
Nunes e perto do Liceu com o mesmo nome, tinha uma particularidade que, ou
nasceu com ele ou então foi adotada face às temperaturas normais e sem dispor
de qualquer sistema de ar condicionado: em vez de bancos agrupados, como os
outros tinham para organizar a plateia, tinha mesas de madeira, tampo
quadrangular e quatro cadeiras em volta de cada mesa; era uma esplanada dentro
do edifício, onde serviam várias bebidas e serviam os chamados “acepipes” ou
salgados à escolha, sendo que tremoços havia sempre! Esse serviço era prestado
com o filme a decorrer e nos intervalos, penso que mais que um, eram mais para
o reabastecimento.
O Miramar foi construído à beira da falésia, formada na
colina, onde o bairro fino com o mesmo nome foi sendo edificado, só com
vivendas e todas ou a maior parte, eram muradas; dizia que a falésia foi
formada pelo corte feito na colina frente à Baía e ao mar, para serem
construídos o porto marítimo e a estação dos Caminhos-de-ferro. Parte da
plateia era coberta por um por uma pala feita em madeira, apoiada em postes
tubulares em ferro e sem qualquer parede para proteção dos ventos, toda a parte
restante era a céu aberto, do lado direito tinha um bar com uma pequena
esplanada de onde os que frequentavam por vezes ficavam a ver o filme. O écran,
era uma placa de betão na vertical, com uma ligeira curvatura, assente sobra
uma placa que lhe servia de “pedestal” Estava já a escassos metros da beira da
falésia, só areia de consolidação frágil que, de vez em quando, se soltava mais
um pedaço e ia parar ao aterro que já se estava formando com os pedaços que desistiam,
por Acão das chuvas e do vento, de servir de suporte ao écran e, respeitando a
lei da gravidade, desciam e se aninhavam até pararem! Dos três que funcionavam,
era o Miramar o mais atraente em dias normais, e ficava às moscas em dias de
chuva ou de vento forte. De dia, cinema não havia!
Como os filmes ficavam em exibição por vezes várias semanas,
ao terceiro dia ficava-se sem programa, a não ser que o filme justificasse uma
segunda vista, o que era raro.
Assim, para as noites em que não havia cinema, tínhamos que
inventar outra forma de estar ao ar mais fresco da noite, por que em casa, o
que havia era calor! Televisão ainda não havia, rádio não tinha e a vida de
bares, boates ou cabarés, eram demasiado caras para o salário de um furriel.
V
Para que a rotina se não instalasse, no final de Agosto –
estamos no ano de sessenta e um – fui destacado para a bateria cento e quarenta
e sete, que iria entrar em operações, onde estive quase todo o mês de Setembro,
a tomar parte na Operação Esmeralda. Este período de vinte e seis dias será
tratado em apontamento próprio, ou capítulo, para que tenha o destaque que lhe
atribuo, que pode muito bem ser que o não mereça para algum incauto que venha a
tomar contacto com este registo.
O correio, sobretudo o que a cada um era destinado, tinha uma
importância incalculável! Não tanto pelo conteúdo, na maioria das vezes, mas
por ele o meio de ligação mais comum para comunicar com familiares e amigos.
Também o pessoal que ia chegando e era conhecido, funcionava
como pombo-correio trazendo noticias de um País onde nada era normal e menos
ainda surpreendente.
No início foi o centro da cidade o espaço privilegiado para
satisfação das nossas curiosidades; depois, mas só durante o dia, foram os
bairros indígenas, os musseques, que despertaram mais interesse; os mais
próximos da cidade, como o São Paulo, quase já rodeado de prédios de vários
pisos para habitação, e estabelecimentos de vários ramos, ocupando espaço que,
de certeza, estava antes ocupado por cubatas, ora empurrando-as para mais
longe, ora cercando-as de edifícios com vários pisos, destinados a quem tinha
possibilidade de pagar uma renda os mesmo comprar, como no caso do São Paulo.
As cubatas, na sua quase totalidade, eram construídas com
estacas em bruto, de uma árvore cujo nome não sei e depois de feita a armação é
colada lama que vai secando e que é um isolador e regulador de temperatura!
Mesmo quando a chuva era muita quase sempre aguentavam, com um outro dano, logo
recuperado. Nas ruas, de terra solta, perdida já a cor avermelhada ou da cor de
tijolo, devido ao uso constante e ausência de limpeza, a cor era mais cinzenta
e ficavam alagadas, com as chuvadas, mas depressa secavam, uma boa parte se
infiltrando e ao mesmo tempo vaporizando e subindo para se juntar à já densa
camada da atmosfera.
A maioria dos indígenas não trabalhavam, trabalho não havia,
vivendo em extrema pobreza e a maior parte das famílias tinham um rancho de
filhos.
Não foi difícil concluir que toda a cidade, exceto a faixa
virada para o mar, da Ilha ao Miramar, estava cercada de musseques, cada um com
seu nome próprio e características diferenciadas. Um deles, cujo nome não
recordo, o último daquele lado do planalto; a seguir era a descida para o
Cacuaco. Era tido como o mais perigoso e parece que não era só fama.
Fui lá um dia, acompanhado por um dos moradores, motorista no
GACL. Mal entrei, a sensação era a de labirinto, mas rapidamente passou para a
de cerco, nos espaços entre cubatas mal cabia um corpo, mesmo que não fosse
avantajado e dois a cruzarem-se, só mesmo de lado. Dos lugares menos esperados
surgia uma cabeça que mal se distinguia entre o castanho dos muros, formados
por estacas, onde iam entalando qualquer tipo de matérias sem préstimo, como
latas, cartão e pedaços de esteira que raramente era nova! Alguns houve onde
nunca fui, mas gostava de ter ido!
Não eram inocentes, ou curiosidade apenas, as incursões a
estes bairros de nativos, a partir de certa altura; tinham a ver com a oferta
de sexo, diferente do tradicional, no centro da cidade, onde as prostitutas
eram já idosas, pouco afáveis e não poucas vezes, quase insultuosas! A algumas,
o dinheiro abundante “subiu-lhes â cabeça” e eram as novas-ricas: uma lástima!
No musseque havia as variedades de idades, de tom de castanho
da pele, do rosto mais ou menos bonito, embora o europeu em geral, dissesse que
eram todos iguais. O asseio era sempre tido em conta, porque o preço era
estandardizado: cinquenta angolares.
Entretanto, como sempre deve suceder em tempo de guerra, os
proxenetas iam importando gente para satisfazer a procura que a concentração de
jovens deslocados sempre desencadeia. As boîtes abriam como cogumelos, mas
rapidamente deixavam de o ser e passavam a cabarets, ou casas de alterne e era
para estes novos espaços que eram canalizadas pelos seus “homens”!
Apareceram portuguesas, algumas da Ilha da Madeira ou assim
se dizendo, já com contrato firmado para os cabarés, ajudando a enriquecer
comerciantes e angariadores, mais do que elas próprias! O costume…
Como a procura aumentava e o “serviço” prestado não era muito
pesado, a oferta acompanhava o ritmo de crescimento; as dificuldades eram
grandes para as famílias nativas, sobretudo depois da quase deserção dos
europeus, já que muitos daquela gente nova eram criados destes: criados, não
empregados!
A vida dos europeus em Luanda, segundo me diziam e fui
confirmando, funcionava em pequenos grupos, formados com base no local de
trabalho ou profissão, raramente de residência; alguns eram a partir da região
de que eram originários em Portugal.
É conveniente esclarecer, para mais facilmente entender este
fenómeno, que a maioria dos portugueses que residiam em Angola ou noutras das
“províncias” ultramarinas, ali tinham chegado, depois de terem preenchido
algumas formalidades, nomeadamente a da “carta de chamada”. Os seja, teria de
haver alguém que, grosso modo, se responsabilizasse pela pessoa que ali queria
ir viver.
Terá havido, muito antes destes, naturalmente, os dos
degredados, ou sejam, os condenados nos seus Países, Portugal, Brasil, Espanha
e até Itália, por crimes de natureza sexual, contra a religião vigente e outros,
coincidindo com a criação do Império Colonial: purgar o pecado e limpar a
Europa! Havia outras colónias, como Brasil e Moçambique para onde eram
desterrados, mas Angola foi tida como “terra de degredo”, talvez por ser a mais
próxima! Alguns se tornaram famosos e formaram grandes fortunas, mas não me
parece de algum interesse abordar um tema que está tratado por especialistas e
fugia do projeto que me propus levar a cabo: a minha passagem pela terra para
onde eram enviados alguns condenados por crimes que a sociedade europeia
definiu como graves.
Quando cheguei a Angola, penso que estaria preso um escritor,
cujo crime era esse mesmo – ser escritor. Luandino Vieira, preso numa das
cadeias de Luanda, quase desconhecido para o meio literário, veio a ser o autor
de uma obra com o titulo – Luuanda -, premiado pela Sociedade Portuguesa de
Escritores e não entregue, por os governantes de então não terem gostado; e
como eles não tinham gostado, gente de gosto requintado, ninguém mais devia ou
podia gostar, dando ordem para apreender toda a edição. E foi assim que li o
Luuanda, do Luandino, que tinha sido apreendido por ordem de um Tribunal de
Lisboa.
Não se ficaram só pela recolha dos livrinhos, dissolveram a
Sociedade Portuguesa de Escritores e convidaram os dirigentes e membros do júri
que atribuiu o Grande Prémio da Novela, Camilo Castelo Branco a passarem pela
António Maria Cardoso, por que a PIDE-Policia Internacional e de Defesa do
Estado, queria apresentar-lhes cumprimentos pela decisão de distinguirem o
condenado escritor!
Na altura, um dos três jornais regionais que não davam
descanso aos senhores da Censura, o Jornal do Fundão, o Noticias da Amadora e o
Comércio do Funchal, o do Fundão, teceu largos elogios ao autor, preso em
Luanda a cumprir uma pena de catorze anos de cadeia, por não saber escrever de
maneira que os críticos de lápis azul gostassem, acabou por ser suspenso, por
terem direito a umas férias pelo esforço despendido com o elogio ao autor do
Luuanda.
Este “negócio” dos livros apreendidos foi em sessenta e
cinco, era eu Encarregado de Instrução Preparatória no Tribunal Judicial de
Leiria, acompanhando o Juiz Ajudante do Procurador da República na visita a uma
das livrarias da Marinha Grande e duas de Leiria! Rendeu pouco, um livro na
Marinha e três em Leiria!
Voltando a Luanda e aos grupos fechados que se encontravam,
rotativamente na casa de cada um, à noite, para celebrar algum acontecimento,
para cavaquear, ou para cometerem o pecado da gula! Ao fim de semana eram as
famílias, com seus farnéis, a espalharem-se pelas praias que se foram formando,
umas maiores, outras só uma pequena faixa de areia, desde o Forte de São Paulo
até à ilha do Mussulo ou para as da ilha do Cabo, podendo escolher mar agitado
ou águas quase paradas, as da baía! Mesmo na frequência das praias se notava a
que extracto económico pertenciam. Como não eram muitos era fácil perceber.
Depressa chegámos à conclusão de que, havendo dinheiro, não
faltavam ofertas para preencher as noites.
O calor era o pior aliado, para não dizer, inimigo. Não pelas
altas temperaturas, como já antes ficou anotado; era a ausência de circulação
da camada de ar, ficando saturada de humidade, transformando a cidade numa
sauna à sua escala.
Uma das primeiras recomendações que um motorista de táxi me
fez, logo num dos primeiros dias, foi a forma de evitar o paludismo e a
desidratação: tomar muito “quinino” líquido, cerveja ou whiskey e não ligasse
muito aos comprimidos de “camo quine” que nos eram distribuídos no quartel. E,
assim, procedendo, não tanto para seguir o conselho do taxista, mas por ser
inevitável ingerir líquidos para manter o equilíbrio da saúde.
Uma das bebidas que adotei e que em Portugal ainda não havia,
foi o Seven Up, o Setup como a maioria lhes chamava. Era agradável de sabor e podia
beber-se quase gelado. Era, sobretudo, original, parecido com as gasosas de
Portugal.
A Cuca e a Nocal, cervejas fabricadas em Angola, eram as de
maior consumo, já vendidas em garrafas de um litro e que a Sagres não fazia em
Portugal.
Durante o primeiro ano as companhias das noites, além das
inseparáveis melgas, foram o Magalhães e o Pinto, ambos colegas de pensão e o
primeiro, de serviço também.
A integração noturna foi sendo feita com alguma eficácia e já
em vários locais éramos conhecidos, respeitados e até bem-vindos; noutros, nem
por isso, sobretudo no cinema Restauração, a partir de um incidente que podia
ter sido evitado ou resolvido de outro modo.
Por estranho que possa parecer, passados meses sobre o inicio
do conflito que, todos, mais ou menos, sabiam das causas principais, uma delas
era o tratamento desigual entre as diversas raças de que a população de Angola
era formada, mais ainda a luandense. Mesmo entre elas, segundo critérios de
alguns dos seus membros, tinha que haver distinções, nunca invocada a questão
do mérito.
Não eram muitos os turistas que procuravam Luanda e quando
não há procura não há investimento e não havendo este aquela não surge. Não é
nada inventado, são as regras próprias que vão gerindo a aplicação de capitais
em sociedades fechadas e de poucos conhecimentos, se comparadas com as que
viveram a primeira grande revolução industrial. E se Portugal a não viveu e
dela não beneficiou, estranho seria que as suas colónias a tivessem. Portugal
sempre foi, segundo analistas do século XX, um país de comerciantes ou
negociantes, sem vocação industrial.
Sendo poucos os turistas, de vez em quando nos cruzávamos com
europeus, vindos de outros pontos de Africa, nomeadamente do Congo Belga,
países que tiveram suas colónias naquele continente, como a França e que iriam
a Luanda em negócio, frequentando o que havia para ocuparem seus tempos livres:
os cafés, restaurantes, cervejarias e cinema, sobretudo quando eram realizados
por franceses ou dobrados nesta língua, sobretudo no Restauração.
De calção, camisa de manga curta e fresco tecido e ausência
de gravata.
O porteiro, por certo cumprindo ordens da gerência, não
criava entrave algum, bastava-lhes que falassem francês.
Com os militares portugueses, nomeadamente graduados, só
entravam se engravatados, depois de entrar acabava a obrigação de a manter! Era
como um livre-trânsito para militares, juntamente com o bilhete.
O controlo dos bilhetes e da gravata, era feito uns metros
depois da entrada, por uma porta aberta num gradeamento em ferro em toda a
extensão do hall.
Aquilo andava a provocar uma revolta que atingia todos;
decidimos correr o risco e resolver a questão, ou seja, acabar com aquele tipo
de discriminação.
No dia combinado, o grupo era de cinco ou seis,
apresentámo-nos ao portão todos sem gravata e de bilhete na mão. Aguardámos,
propositadamente que dois belgas estivessem a entrar.
Sem problema algum, entraram. A seguir apresentei-me eu, sem
gravata e logo o zeloso porteiro levantou a “cancela” em que o seu braço
direito se transformou e abanando a cabeça ia dizendo “sem gravata não”.
Como estava combinado, seguiram-se mais dois, cada um pegando
o porteiro pelas axilas, enquanto eu pedia ao belga para nos acompanhar em
direcção ao gabinete da gerência e os dois restantes ficaram a tomar conta da
entrada, pedindo aos clientes que ainda não tinham entrado para aguardarem um
momento.
Mal nos viu chegar, o autoritário senhor ainda esboçou um
gesto de protesto, que não terminou, quando eu lhe perguntei o porquê de o
estrangeiro ter um tratamento diferenciado do português? Ali, naquela época, o
português não era estrangeiro, sendo isso que estava em disputa naquela guerra,
mas o pessoal do Restauração não soubesse ou fingia não saber.
Não houve grande discussão, mas quando o porteiro regressou
ao posto de trabalho a substituir os furriéis Gil e Silva, já trazia a ordem de
não mais exigir o uso de gravata a quem quer que fosse.
IV
|
Houve aplausos, sobretudo do belga e do porteiro e este a
dizer: “já não era sem tempo…acabou a injustiça!”
Outras se foram corrigindo, mas deixo só mais um exemplo.
Um pouco mais tarde que em Portugal, também a Luanda chegou a
moda dos teddy-boys! Embora com algum atraso chegava quase tudo o que era mau!
E para azar dos seguidores da moda e nosso também, um núcleo
de adeptos provocadores assentava arraiais no Bracarense; jovens, mais novos
que nós, alguns a exibirem pastas de calfe com fitas de cores diferentes, como
se fossem alunos de faculdade em Portugal e talvez fossem, já que Angola não
tinha Universidade naquela época.
Da esplanada do “Braca”, viam-se uma boa parte do Largo da
Maianga de onde parte a Avenida que liga ao aeroporto. O grupinho, pouco
corajoso, mal via passar uma quitandeira passar, normalmente vendendo banana e
abacaxi, levantava-se, tipo bando de pardais, avançavam para a negra,
cercavam-na, insultavam, empurravam de uns para outros, mais bofetão, a fruta a
cair do cesto e a ser pontapeada pelo passeio.
Soubemos desta peça de teatro pelo encarregado do Bracarense,
que tinha sido nosso colega na casa da Dona Rosa e logo combinámos que os
“universitários” iam receber uma aula prática de direito, mesmo que as fitas
fossem de medicina ou letras.
Deviam ser umas cinco e meia da tarde, era sábado e reparámos
que o grupo das fitas se dirigia para a Rotunda; tinham visto a negra, de giga
à cabeça, apregoando “bananoê”.
Nós fomos de seguida, separados e a disfarçar, olhando para
os carros que passavam e não perdendo de vista o grupo fiteiro , já a iniciar o cerco!
Avançou o nosso “pelotão” quando as bananas já tinham abandonado
o certo e a negra a gritar por socorro!
Então, senhores universitários, andam nas aulas práticas? O
bando ia a debandar, mas fê-lo muito devagar e ainda deu tempo para lhes
assentarmos umas biqueiradas nos traseiros e umas estaladas na cara de parvos,
ao mesmo tempo que lhes prometíamos que continuaríamos a seguir o caminho dos
seus “cursos”!
Foi “remédio santo”, como como costuma dizer-se! Devem ter
abandonado a faculdade e desmembrado o grupo; quando voltaram a reaparecer no
Bracarense era aos pares e as pastas de fita ficaram em casa.
Reis Caçote
ESTE ME LEVOU E SE COMPROMETEU (EU NÃO) A TRAZER-ME![]() |
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![]() |
ERA O CAFÉ ONDE NOS JUNTÁVAMOS PARA APANHAR O AUTOCARRO QUE NOS LEVAVA PARA O QUARTEL E SE RECEBIAM OS AMIGOS QUE CHEGAVAM, VINHAM DE FÉRIAS OU DE PASSAGEM! |